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+ Marcelo Gleiser
Sonhos alquímicos
É comum, em meio aos transtornos da pesquisa, nos esquecermos de
por que fazemos ciência
Quando se menciona a alquimia, logo se pensa em homens
místicos, de barbas longas,
tentando transformar chumbo em ouro em seus laboratórios escondidos no
alto de lúgubres torres medievais. Ou
no famoso livro de Paulo Coelho. Não
há dúvida de que a alquimia tinha
mesmo um aspecto místico, dado que
as transformações da matéria por
meio de reações químicas eram então
cercadas de mistério. Aquilo que não
se compreendia era atribuído a forças
ocultas, o que, de certa forma, não era
tão errado assim: as forças eram mesmo ocultas -já que nada se conhecia
da estrutura das moléculas e dos átomos. Por outro lado, as práticas alquímicas foram fundamentais para o desenvolvimento posterior da química,
algo que não deve ser ignorado.
Foram os filósofos pré-socráticos
que, ao indagarem qual era a composição material do mundo, inauguraram
a tradição científica. Mesmo que os
gregos não tenham desenvolvido o
método de validação empírica que caracteriza a ciência, ou seja, mesmo
que não tenham feito experimentos
para comprovar suas hipóteses, foram
eles que lançaram as bases racionais
para a compreensão do mundo natural. A idéia de Leucipo e Demócrito de
que tudo é composto de átomos está
conosco até hoje, mesmo que os átomos modernos sejam bem diferentes
do ideal grego. Ainda mais fundamental é a noção de que a natureza está
sempre em transformação e que essas
transformações ocorrem devido a
agentes que podem ser manipulados
pelo homem: o fogo, por exemplo, é o
agente transformador mais usado na
antigüidade, para forjar espadas e escudos ou ferramentas diversas.
Os alquimistas também vão usar os
poderes transformadores do fogo na
sua busca pela purificação gradual dos
metais em direção ao mais puro deles,
o ouro. A tradição alquímica na Europa surgiu nos séculos 12 e 13, inspirada pelos textos de alquimistas muçulmanos escritos alguns séculos antes,
especialmente os de Jabir Ibn Hayian,
ou Geber. Influenciado por Aristóteles, Geber dizia que as misturas dos
quatro elementos (terra, água, ar e fogo) não são permanentes. Isso porque
os elementos têm propriedades em
comum: a água é fria e úmida, a terra é
fria e seca. Tirar umidade da água gera
gelo, que é frio e seco e, portanto, tem
mais terra. Do mesmo modo, deveria
ser possível transformar diferentes
materiais entre si. Para obter ouro,
Geber propôs uma combinação inicial
de enxofre (seco e quente) e mercúrio
(úmido e frio) que, contendo todos os
elementos e suas propriedades, poderia em princípio gerar qualquer outro.
O ato de transformar metais em ouro, a Obra Magna, necessitava da "pedra filosofal", o catalisador essencial.
O problema era encontrá-la. Existiam
também influências astrológicas que
determinavam o possível sucesso das
operações. O alquimista não era apenas o agente inerte de transformações
materiais; ele mesmo se transformava
espiritualmente através da sua prática, purificando-se à medida que se
aproximava de seu objetivo.
A simbologia alquímica, carregada
de misticismo e ocultismo, criava uma
linguagem pré-científica que integrava o homem ao cosmos, a purificação
dos metais levando à purificação da
alma. Existe algo de muito belo nessa
imagem em que a prática da ciência
tem um significado que vai além do
simplesmente material. É comum, em
meio aos desafios e transtornos da
pesquisa, nos esquecermos de por que
fazemos ciência, das motivações que
levam alguém a dedicar a vida à pesquisa e ao ensino. Em momentos difíceis, penso no alquimista em seu laboratório, buscando por uma verdade
que parece sempre mais perto, jamais
aceitando que ela é inatingível em sua
totalidade.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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