São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2007

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+ Marcelo Leite

Para inglês ver e ler

Publicar em língua nativa ainda é ver seu trabalho em periódicos de impacto inferior

Não há escapatória: a "lingua franca" da ciência hoje é o inglês. Quem quiser ser visto e lido tem de dominar pelo menos o inglês científico, um patoá escrito que não faz jus à língua materna de Shakespeare. É fato, não boato: prosa científica é um troço chato.
Para se render à constatação, porém, não é necessário agachar-se. No Brasil, andou grassando a mania dos nomes anglófilos para tudo. Já houve até uma Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis (Onsa, ou Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos, protagonista do projeto genoma bandeirante). Publicar em inglês tornou-se obrigação para cientistas naturais. Primeiro, para ganhar visibilidade fora do país. Depois, para ter acesso aos "quality journals" (periódicos de primeira linha), dotados de "peer review" (revisão por pares) e "high impact factor" (altos índices de impacto) que embasbacam os apontadores de produtividade da burocracia financiadora. Nem tudo que se publica em ciência, porém, tem interesse ou aplicação internacional. Estudos biomédicos ou agrícolas, por exemplo, muitas vezes restringem-se a fenômenos regionais.
Torná-los disponíveis para os diretamente afetados -especialistas em saúde ou extensionistas rurais- é vital para melhorar seu desempenho. O dilema "inglês versus português" está no centro de artigo publicado por Rogério Meneghini e Abel Packer -em inglês, decerto- no periódico "EMBO Reports" (www.nature.com/embor/journal/v8/n2/full/7400906.html). Já traduzido, seu título pergunta: "Existe Ciência Fora do Inglês?" Meneghini e Packer são dois dos motores por trás da iniciativa que mais fez, provavelmente, para aumentar a visibilidade da ciência brasileira -interna e externamente. Trata-se da SciELO (www.scielo.br), ou "Scientific Electronic Library Online".
Como o nome diz -em inglês...-, o portal foi criado para dar acesso livre a periódicos nacionais (175, hoje). Alguns são publicados diretamente em língua inglesa, perfazendo 30% dos artigos disponíveis na base. Outros trazem, ao menos, sumários ("abstracts") nesse idioma. Como a página na internet tem versão em inglês, em princípio qualquer cientista do mundo pode pesquisar o que se estuda, no Brasil, em sua área. A SciELO também tornou mais acessível, para brasileiros e latino-americanos, a produção científica nacional. Não é preciso saber inglês nem pagar para utilizar seu dispositivo de busca. Até jornalistas conseguem usá-lo, e as consultas diárias a artigos já ultrapassam a média de 200 mil.
Apesar disso, apontam Meneghini e Packer, o idioma de publicação ainda funciona como um divisor de águas. Dos cerca de 50 mil artigos científicos produzidos anualmente por brasileiros, 18 mil entram na base de dados Web of Science ("teia da ciência"), principal ferramenta internacional de indexação. Destes, só 2,7% saem em português. Publicar em língua nativa ainda significa, na maioria dos casos, ver seu trabalho em periódicos de qualidade e impacto inferiores.
A SciELO tem feito muito pela difusão da produção científica autóctone entre aqueles que não dominam o inglês. Para que a nata dessa produção fique acessível a todos, porém, seria preciso que congêneres poderosas, como a Web of Science, divulgassem versões dos artigos seletos também na língua nativa de seus autores.


MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático"Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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