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+ Marcelo Leite
Para inglês ver e ler
Publicar em língua nativa ainda é ver seu trabalho em periódicos de impacto inferior
Não há escapatória: a "lingua
franca" da ciência hoje é o inglês. Quem quiser ser visto e
lido tem de dominar pelo menos o inglês científico, um patoá escrito que
não faz jus à língua materna de Shakespeare. É fato, não boato: prosa
científica é um troço chato.
Para se render à constatação, porém, não é necessário agachar-se. No
Brasil, andou grassando a mania dos
nomes anglófilos para tudo. Já houve
até uma Organization for Nucleotide
Sequencing and Analysis (Onsa, ou
Organização para Seqüenciamento e
Análise de Nucleotídeos, protagonista
do projeto genoma bandeirante).
Publicar em inglês tornou-se obrigação para cientistas naturais. Primeiro, para ganhar visibilidade fora do
país. Depois, para ter acesso aos "quality journals" (periódicos de primeira
linha), dotados de "peer review" (revisão por pares) e "high impact factor"
(altos índices de impacto) que embasbacam os apontadores de produtividade da burocracia financiadora.
Nem tudo que se publica em ciência, porém, tem interesse ou aplicação
internacional. Estudos biomédicos ou
agrícolas, por exemplo, muitas vezes
restringem-se a fenômenos regionais.
Torná-los disponíveis para os diretamente afetados -especialistas em
saúde ou extensionistas rurais- é vital para melhorar seu desempenho.
O dilema "inglês versus português"
está no centro de artigo publicado por
Rogério Meneghini e Abel Packer
-em inglês, decerto- no periódico
"EMBO Reports" (www.nature.com/embor/journal/v8/n2/full/7400906.html). Já traduzido,
seu título pergunta: "Existe Ciência
Fora do Inglês?"
Meneghini e Packer são dois dos
motores por trás da iniciativa que
mais fez, provavelmente, para aumentar a visibilidade da ciência brasileira
-interna e externamente. Trata-se da
SciELO (www.scielo.br), ou "Scientific Electronic Library Online".
Como o nome diz -em inglês...-, o
portal foi criado para dar acesso livre a
periódicos nacionais (175, hoje). Alguns são publicados diretamente em
língua inglesa, perfazendo 30% dos
artigos disponíveis na base. Outros
trazem, ao menos, sumários ("abstracts") nesse idioma. Como a página
na internet tem versão em inglês, em
princípio qualquer cientista do mundo pode pesquisar o que se estuda, no
Brasil, em sua área.
A SciELO também tornou mais
acessível, para brasileiros e latino-americanos, a produção científica nacional. Não é preciso saber inglês nem
pagar para utilizar seu dispositivo de
busca. Até jornalistas conseguem usá-lo, e as consultas diárias a artigos já ultrapassam a média de 200 mil.
Apesar disso, apontam Meneghini e
Packer, o idioma de publicação ainda
funciona como um divisor de águas.
Dos cerca de 50 mil artigos científicos produzidos anualmente por brasileiros, 18 mil entram na base de dados
Web of Science ("teia da ciência"),
principal ferramenta internacional de
indexação. Destes, só 2,7% saem em
português. Publicar em língua nativa
ainda significa, na maioria dos casos,
ver seu trabalho em periódicos de
qualidade e impacto inferiores.
A SciELO tem feito muito pela difusão da produção científica autóctone
entre aqueles que não dominam o inglês. Para que a nata dessa produção
fique acessível a todos, porém, seria
preciso que congêneres poderosas, como a Web of Science, divulgassem
versões dos artigos seletos também na
língua nativa de seus autores.
MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático"Pantanal, Mosaico das
Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em
Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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