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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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RUSSO AFIRMA TER SOLUCIONADO UM DOS PROBLEMAS MATEMÁTICOS MAIS ELUSIVOS DO MILÊNIO; TRATA-SE DA CONJECTURA DE POINCARÉ, CONCEBIDA NO SÉCULO 19, QUE SUGERE QUE TODAS AS FORMAS DA GEOMETRIA PODEM SER REDUZIDAS A ESFERAS E ROSCAS

SHOW
DO MILHÃO

Reprodução
Selo postal francês lançado em 1952 homenageia o matemático Henri Poincaré


Steve Connor
do "The Independent"

Há quase um século ele atiça e atormenta alguns dos mais brilhantes matemáticos do mundo, tendo derrotado os esforços de todos para resolvê-lo. Agora, um estudioso russo pouco conhecido está causando espanto no mundo rarefeito da topologia, ou ciência das superfícies, ao propor o que parece ser a primeira prova formal da validade da conjectura de Poincaré.
Grigori Perelman, do Instituto Steklov de Matemática, de São Petersburgo, passou oito anos solitários se debatendo com um dos problemas mais difíceis da matemática, formulado pela primeira vez em 1904 pelo francês Henri Poincaré, universalmente tido como o pai da topologia.
A conjetura diz respeito às propriedades de superfícies em duas, três ou mais dimensões, e, em essência, propõe que todas as formas existentes podem ser reduzidas a esferas ou roscas. Mas é claro que ela não se resume apenas a isso.


Se Perelman resistir aos ataques, receberá o prêmio de US$ 1 milhão do Instituto Clay -um dos sete oferecidos a quem encontrar soluções para os maiores problemas matemáticos do milênio que ainda não foram resolvidos


A maioria das pessoas acharia impossível compreender até mesmo a formulação mais simples da conjectura, muito menos sua solução. Mas resolvê-la poderia acabar levando à compreensão da forma do Universo, além de valer a Perelman 1 milhão de dólares como prêmio por ser a primeira pessoa a oferecer uma solução válida do problema.

Explicação aos colegas
Perelman passou o último mês percorrendo universidades americanas, explicando as voltas e reviravoltas complicadas de sua prova formal a um público composto por seus pares. Muitos deles saíram convencidos de que ele havia achado a solução, mas ninguém, por enquanto, está preparado para garantir que sim. "Estamos nos esforçando ao máximo para compreender o que Perelman fez", disse Tomasz Mrowka, topólogo do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), que promoveu uma série de palestras de Perelman. "Está claro que ele fez alguma coisa", completou. "Você não vai passar muito tempo lendo seus artigos e sair de mãos abanando." "As palestras dele foram muito claras. As pessoas ficaram extremamente interessadas. É claro que, em se tratando de um problema como esse, que já tem um histórico tão longo e inclui muitas tentativas fracassadas de encontrar uma solução, as pessoas pensam duas vezes antes de fazer afirmações definitivas", prosseguiu Mrowka. "A platéia apreciou muito o que ele tinha a dizer. Os aplausos ao final da última palestra foram longos e entusiasmados. É um problema difícil. As técnicas usadas começaram a ser desenvolvidas há apenas 20 anos." Perelman tem se negado a conceder entrevistas sobre seu trabalho, mas alguns estudiosos já comparam sua proposta à história de Andrew Wiles, o matemático inglês que ficou famoso em 1995 ao resolver o último teorema de Fermat, numa demonstração espantosa de erudição acadêmica, enquanto estudava na Universidade de Cambridge. Duas semanas atrás o professor Wiles estava sentado na quinta fileira do auditório Taplin, na Universidade Princeton, em Nova Jersey, onde ele ocupa uma cadeira de matemática, para ouvir a palestra de Perelman (e John Nash, o matemático laureado com o Prêmio Nobel que inspirou o filme "Uma Mente Brilhante", estava sentado três fileiras atrás dele). Falando alguns dias atrás, o professor Wiles destacou que não é especialista nesse campo da matemática e que, portanto, não tem condições de avaliar a qualidade das evidências mostradas por Perelman. "Tudo depende de detalhes", ele afirmou. "Sempre é muito instigante, a meu ver, quando alguém apresenta um argumento capaz de trazer uma solução para um desses problemas de longo prazo." A história da proposta de Perelman começou em novembro passado, quando, sem alarde, ele divulgou na internet uma versão preliminar de seu primeiro artigo de pesquisa, no qual fez uma afirmação no mínimo enigmática: "Damos um esboço de uma prova eclética dessa conjectura". Alguns especialistas pensaram que ele estivesse propondo um método para atracar-se com a conjectura, em lugar da solução de fato, mas em março Perelman postou na internet um segundo artigo, este contendo mais detalhes sobre uma suposta solução da conjetura. Um terceiro documento, detalhes do qual ele incluiu em suas palestras nos EUA, deveria concluir o trabalho. Mas o Instituto Clay de Matemática, em Cambridge, Massachusetts, que é árbitro do prêmio, vai levar pelo menos dois anos para decidir se a proposta de Perelman resiste ao exame detalhado de seus especialistas. Enquanto isso, o estudioso russo pode esperar que as melhores cabeças matemáticas do mundo façam tudo o que puderem para encontrar falhas em seu argumento. Se Perelman resistir ao ataque, ele receberá o prêmio máximo do Instituto Clay, no valor de 1 milhão de dólares. É um dos sete prêmios que o instituto está oferecendo para quem encontrar soluções para os maiores problemas matemáticos do milênio que ainda não foram resolvidos. Será uma pessoa corajosa aquela que anunciar prematuramente a solução da conjectura. Esse é um campo pontilhado de anúncios que acabam se revelando falsos, como bem sabe o professor de matemática Martin Dunwoody, da Universidade de Southampton. No ano passado, Dunwoody propôs uma explicação da conjectura de Poincaré, mas sua proposta foi rapidamente reduzida a frangalhos, desmembrada pedaço por pedaço por estudiosos rivais. "Eu pensei que tivesse encontrado a solução, mas estava enganado", disse Dunwoody. "Fiz a besteira de divulgar minha "solução" na rede. As pessoas a examinaram, e, pelo que disseram a seu respeito, pude perceber que eu estava enganado."

Problema difícil
É fato da ciência matemática que uma eventual solução da conjectura de Poincaré só poderá ser compreendida plenamente por algumas poucas dezenas de pessoas em todo o mundo. A própria formulação do problema já é algo que não pode ser exposto facilmente. Uma maneira de enxergar a conjectura consiste em imaginar a superfície de uma bola de futebol. Quer a bola esteja inflada ou murcha, sua superfície real será a mesma. Desde esse ponto de vista, dizemos que a superfície é bidimensional. Um elástico esticado sobre a superfície da bola pode ser apertado até formar um ponto único em qualquer lugar da superfície, sem romper ou rasgar a bola ou o elástico. Não será esse o caso se o elástico puder ser esticado em volta de uma superfície semelhante com um furo no meio -um toro, ou formato de rosca. Na realidade, a bola de futebol é a única forma bidimensional que possui essa propriedade, e Poincaré, reconhecendo que existe um espaço tridimensional, conhecido como a 3-esfera, ao qual ela também se aplica, indagou se esse é o único espaço tridimensional dessa natureza. Perelman afirma ter demonstrado que sim. O que é espantoso na proposta de Perelman é que ele estava tentando conseguir algo muito maior do que simplesmente encontrar a solução da conjectura de Poincaré. Na verdade, ele não menciona Poincaré em lugar algum em seus artigos de pesquisa.

Problema mais difícil
Na verdade, o estudioso russo estava tentando comprovar a conjectura da geometrização, proposta pela primeira vez pelo matemático americano William Thurston nos anos 1970. Trata-se de um conjunto mais abrangente de normas que define e caracteriza todas as superfícies tridimensionais.
A conjectura de Thurston é uma extensão da de Poincaré. Assim, se Perelman conseguir resolver a conjectura da geometrização de Thurston, ele terá automaticamente resolvido a conjectura de Poincaré, disse o professor de matemática Graham Niblo, da Universidade de Southampton. "Significa que poderíamos criar um catálogo de todas as formas tridimensionais possíveis no Universo. Em última análise, poderíamos descrever a forma real do próprio Universo."
Sir Michael Atiyah, um dos matemáticos britânicos mais respeitados e ex-presidente da Royal Society, disse que o que se comenta é que Perelman descobriu algo de valor e que sua proposta deve ser válida. "Acho que ela é séria, e a maioria das pessoas com quem falei me disse que partes dela já foram examinadas de perto e resistiram bem. Mas muitas coisas ainda precisam ser verificadas, e é muito complicado", ele explicou. "Trata-se provavelmente de um dos problemas matemáticos não-resolvidos que é mais fácil de explicar, mas comprovar sua solução é difícil. Existe uma distância grande entre o lado conceptual e o lado da verificação."

Tradução de Clara Allain


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