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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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Ciência em Dia

A comédia dos transgênicos 2

Marcelo Leite
editor de Ciência

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva está colhendo o que plantou no campo minado dos alimentos transgênicos. Depois de anos beneficiando-se do plantio ilegal de soja geneticamente modificada, sobretudo no Rio Grande do Sul, a Monsanto anunciou há pouco que vai tentar cobrar royalties sobre a soja clandestina que contiver o transgene da empresa para tornar a leguminosa resistente ao herbicida Roundup (glifosato), fabricado pela própria empresa.
A Monsanto pode alegar que está no seu direito, pois se trata de propriedade intelectual pirateada por sojicultores gaúchos. Afinal, a pirataria foi obliquamente reconhecida e oficializada pela medida provisória de Lula que permitiu a comercialização da soja transgênica "Maradona" (as sementes eram contrabandeadas da Argentina). A firma pode também dizer que foi uma das primeiras a denunciar o plantio clandestino.
Por outro lado, também é verdade que a célere adesão dos agricultores à soja "Maradona" foi repetidamente usada como argumento a favor da liberação da variedade Roundup Ready da Monsanto, cujo licenciamento está pendente de decisão judicial final desde 1998. O raciocínio embutido era que se trataria de uma vantagem clara para os fazendeiros, se tantos deles estavam dispostos a adotar a tecnologia, mesmo sendo ilegal. Além disso, a ausência de danos à saúde ajuda a disseminar a noção de que a RR é segura, e não o desastre que só os inimigos da tecnologia estariam apregoando.
Outra maneira de encarar o sucesso de Maradona entre os gaúchos o qualifica como um sintoma grave do aparelho regulador brasileiro, no caso a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança): sua inoperância -ou negligência, tanto faz- na hora de policiar as atividades agrícolas com transgênicos.
Por mais competentes que fossem os burocratas, técnicos e cientistas que a compõem e compuseram, o fato é que o próprio escopo da comissão (meramente técnica) e a extração de seus membros indicava uma predisposição a favor da transgenia. Como convicção individual, nada há de errado com ela; quando se traveste em política pública e, mais, impede o cumprimento da obrigação de impedir que organismos geneticamente modificados clandestinos se espalhem pelo país e pelo consumo alimentar -aí a coisa muda de figura. "Prevaricar", no caso, é um dos verbos que vêm à mente.
Os defensores da biotecnologia baseada em engenharia genética (transgenia) apostam que ela é irresistível e que regulação alguma restritiva à sua introdução no mercado será eficaz. Pode ser. Mas existe também a questão do acompanhamento dos transgênicos depois que eles chegam ao mercado. Quem não vê problema algum aí deveria atentar mais para a dificuldade de encontrar soluções após o fato consumado, como fica evidente agora na ameaça da Monsanto de cobrar royalties dos exportadores.
Mesmo partidários do pragmatismo anglo-saxão têm motivo para começar a considerar a questão pós-mercado. A comemorada manifestação da Royal Society britânica (www.royalsoc.ac.uk) que insiste na segurança dos transgênicos também alerta para a necessidade de meios analíticos para monitorá-los. E a Iniciativa Pew sobre Alimentos e Biotecnologia ( pewagbiotech.org/research/postmarket), dos EUA, divulgou relatório apontando lacunas no aparelho regulador norte-americano, tido como exemplar por defensores dos transgênicos.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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