São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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+ ciência

Outras visões da vida

Divulgação/Jeremy Pickett Heaps, Universidade de Melbourne, Austrália
O cloroplasto, que realiza a fotossíntese nos vegetais, teria surgido da fusão com uma bactéria (à dir.); imagem de uma alga da espécie Navicula cuspidata em um processo de divisão celular



Lynn Margulis e Dorion Sagan dizem que a biosfera constitui uma noosfera, com consciência e vontade


Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha

O cenário é familiar: o crescimento desenfreado de uma espécie egoísta lança quantidades sem precedentes de um perigoso gás na atmosfera da Terra, colocando em risco toda a vida no planeta. Mas a familiaridade pára por aí: tudo isso foi há 2 bilhões de anos, as formas de vida em questão são as insuspeitas cianobactérias (até pouco tempo atrás chamadas de "algas azuis") e o gás é o oxigênio, indispensável para animais e plantas de hoje.
A comparação entre o oxigênio primordial e a poluição humana é um dos argumentos do livro "O que É Vida?" para demonstrar a visão peculiar de seus autores sobre o que chamam de "exuberância planetária": incomparável em engenhosidade, a vida foi muito mais sujeito do que objeto em seus 4 bilhões de anos de história. Sua ação forjou o planeta e o recobriu com um tapete de matéria animada, das camadas superiores da atmosfera ao fundo dos oceanos.
Quem se lembrou do termo "Gaia" (a Mãe Terra dos mitos gregos) para definir esse planeta vivo acertou em cheio: a bióloga Lynn Margulis, autora do livro com o escritor Dorion Sagan, ajudou a criar a chamada "hipótese Gaia", que vê as formas de vida como um único superorganismo. Para os dois, nada escapa ao abraço de Gaia: mesmo a comunicação por satélite e os mercados globais não passariam de novos órgãos da antiga criatura, prontos para levá-la a mais um estágio de sua história.
Margulis e Sagan (ex-mulher e filho mais velho do astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan, morto em 1996) deixam claro o ambicioso objetivo da obra: "reintroduzir a vida na biologia". Para eles, a vida é um fenômeno material, como qualquer outro no Universo, mas de um tipo especial. Desafiando a segunda lei da termodinâmica (que postula o aumento inexorável do grau de desordem, ou entropia, em qualquer sistema), a vida lutaria de forma quase consciente para manter sua organização interna.
A característica-chave desse fenômeno em guerra perpétua contra a entropia não é a capacidade reprodutiva, argumenta a dupla, mas o que eles chamam pelo nome grego de "autopoese": a capacidade de fazer a si mesmo. Para continuar vivo, um organismo precisa exportar entropia para o meio circundante e importar matéria-prima e energia, refazendo-se constantemente.
Embora dediquem um capítulo a cada um dos cinco reinos da vida na Terra (bactérias, eucariontes unicelulares, plantas, fungos e animais), os autores não escondem a preferência pelos reais construtores da biosfera, as bactérias.
Os seres vivos mais simples também são os que mais contribuíram para fazer do planeta o que ele é hoje: usaram a luz do Sol como combustível e liberaram no ar o então mortífero oxigênio; foram os primeiros a respirar usando o antigo veneno; trocaram genes entre si numa orgia global que dura até hoje e, numa fusão ainda pouco compreendida, geraram todas as outras formas de vida.
Para Margulis, essa simbiose deixou seus rastros nas mitocôndrias, as usinas celulares que guardam como relíquia desse passado bacteriano um DNA próprio. E também nos cloroplastos das plantas, antigas cianobactérias que hoje aprisionam luz solar para outros senhores, embora mantendo material genético próprio. Animais e plantas seriam, assim, o fruto de ao menos duas ou três fusões bacterianas, alianças aparentemente improváveis que espelham a tendência da vida a interagir para sobreviver.
É com base nessa capacidade da vida para lidar com os piores apuros que a dupla faz sua afirmação mais instigante e difícil de provar: a consciência, em maior ou menor grau, seria um fenômeno comum a todos os seres vivos da Terra. O planeta de Margulis e Sagan não é mera biosfera, mas também uma "noosfera" -um mundo repleto de consciência e vontade, forças que teriam moldado a evolução.
Meras bactérias, dizem eles, conseguem nadar na direção do alimento e se afastar do ácido. Protozoários "escolhem" os minerais mais adequados para criar suas carapaças -escolhas minúsculas, comparadas ao grau de livre arbítrio que se atribui a seres humanos, mas que, cumulativamente, o teriam criado.
A ênfase nesse avanço consciente da vida durante o processo evolutivo acaba sendo, talvez, o ponto fraco da obra. Ainda que pequenas decisões "tomadas" por microrganismos contribuam para sua sobrevivência individual, Margulis e Sagan não chegam nem perto de postular um mecanismo que as incorpore na hereditariedade, que é a raiz de toda a evolução. Mesmo assim, e a despeito de um otimismo exagerado que parece enxergar a vida na Terra como um fenômeno invencível, pronto para colonizar as estrelas e imune aos desmandos humanos, o livro toca as cordas certas da razão e da imaginação: a biologia da obra transcende o mecanicismo e recupera, de fato, o contato com a vida.


O que É Vida?
289 págs., R$ 39,50 Lynn Margulis e Dorion Sagan. Jorge Zahar Editor (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/21/ 2262-5123).



Richard Lewontin propõe que investigação biológica abandone a dicotomia entre organismo e ambiente


Salvador Nogueira
da Reportagem Local

Imagine um átomo. Na cabeça logo surge a visão de várias bolinhas de bilhar, de duas cores diferentes, grudadas, com outras tantas, menores, girando em torno do centro -algo como um Sistema Solar em miniatura, só que mais desordenado. Agora, imagine uma molécula de DNA. Duas fitas torcidas formando uma escada. A função? Um programa de computador que codifica instruções para fabricar um organismo.
Seja qual for a ciência de escolha, se começarmos a imaginar coisas que não fazem parte de nosso universo sensorial, intuitivo, descobrimos que todas as imagens que fazemos delas são "traduzidas" em conceitos que somos capazes de assimilar. "Não se pode fazer ciência sem usar uma linguagem cheia de metáforas", defende Richard Lewontin, um dos biólogos mais celebrados da atualidade, logo na abertura de seu último livro, "A Tripla Hélice", recém-chegado ao Brasil.
Como de costume, Lewontin é a personificação da cautela. Na pequena obra (composta pela adaptação de três palestras que ele havia dado antes para biólogos e um capítulo de fechamento escrito especialmente para a publicação), o objetivo é incentivar os cientistas a perder todo e qualquer resquício de uma postura determinista, em todas as esferas de análise da evolução e do comportamento dos organismos, sobretudo humanos.
Para chegar a isso, ele começa do princípio, do método de raciocinar em ciência, e pede cautela com as metáforas. "Embora não possamos dispensar metáforas para tentar compreender a natureza", escreve, "existe um grande risco de que venhamos a confundir a metáfora com aquilo que realmente interessa." A hipótese Gaia, por exemplo, nutrida por Lynn Margulis e James Lovelock (leia o texto à esq.), é vista por Lewontin como uma metáfora fora de controle.
Partindo desse pressuposto, Lewontin dedica o primeiro capítulo a demolir a noção de que o DNA não passa de um software a partir do qual os organismos são criados. Com diversos exemplos e a típica argumentação assertiva, ele mostra que o ambiente, os genes e o acaso formam um trio em que não há real determinação de um sobre outro.
"O organismo não é determinado nem pelos seus genes, nem pelo seu ambiente, nem mesmo pela interação entre eles, mas carrega uma marca significativa de processos aleatórios", diz. "A metáfora da computação (...) capta alguns aspectos da verdade, mas pode desencaminhar-nos se a tomarmos ao pé da letra."
No segundo capítulo, é a vez de o ambiente sofrer a investida. Ele sugere nada menos que uma reformulação da teoria da evolução, embora reconheça o papel de Darwin de destacar a relação entre organismo e ambiente, conformada pela seleção natural, como um passo essencial para o desenvolvimento da biologia moderna. "Mas as condições necessárias para o progresso em um estágio da história transformam-se em obstáculos em outros estágios."
Para Lewontin, uma nova teoria satisfatória para explicar a evolução precisaria enfocar a relação de dupla troca que existe entre organismo e ambiente, sem colocar um na dependência do outro. Com isso, cai por terra a premissa dos fãs do ambiente. "O crescente movimento ambientalista que visa evitar alterações no mundo natural (...) não poderá proceder racionalmente sob a falsa palavra de ordem "Salvemos o ambiente". Não existe um ambiente a ser salvo. O mundo habitado por organismos vivos está sendo constantemente modificado e reconstruído."
No terceiro capítulo, o biólogo quer colocar um ponto final na noção de que as relações que formam o ambiente e o organismo são de causa e efeito, argumentando que é preciso adicionar à mistura uma boa quantidade de acaso e processos que não necessariamente se relacionam com funcionalidade ou sobrevivência. Se ainda havia alguma esperança, para quem chegou até esse ponto do livro, de encontrar uma rota mais segura para o estudo da biologia, ela parece acabar aqui. O próprio Lewontin reconhece, no último capítulo: "Os capítulos anteriores têm uma conotação caracteristicamente negativa", ele escreve. "Eles se dedicam a explicar por que um enfoque reducionista pode nos levar a formular respostas incompletas ou a ignorar características essenciais dos processos biológicos."
Felizmente, ele oferece então uma nova rota. Argumentando não serem essas novidades para os biólogos, ele diz que é preciso fazer mais: incluir essas noções nos métodos de trabalho. "O progresso da biologia não depende de novas conceitualizações revolucionárias, mas sim de novas metodologias que permitam responder a perguntas em um mundo de recursos finitos."
Não é muito para compensar o rolo compressor dos capítulos anteriores, mas, como ele aponta, é mais fácil destruir do que construir. Montando ou desmontando, porém, uma coisa é certa: Lewontin é um mestre na arte de intrigar o leitor.


A Tripla Hélice
144 págs., R$ 25,00 Richard C. Lewontin. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj.32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3167-0801).



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