São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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Ciência em Dia

Biotecnologia, incerteza e risco

Marcelo Leite
editor de Ciência

A engenharia genética pode ser uma tecnologia incrível, sob muitos aspectos. Aplicada na fabricação de medicamentos, resultou em produtos quase idênticos a proteínas do corpo humano, que melhoraram a qualidade de vida de doentes crônicos como diabéticos e hemofílicos (reduzindo reações que eram comuns com compostos de origem animal, por exemplo). Mas a biotecnologia não está isenta de riscos -como ficou patente no caso do medicamento EPO.
No final de junho, tornara-se público que 141 pessoas da Europa e dos Estados Unidos tratadas com a droga desenvolveram uma rara doença do sangue, a aplasia pura de glóbulos vermelhos. Nessa condição, o corpo pára de fabricar essas células responsáveis pelo transporte de oxigênio, essenciais para a vida.
A ocorrência da aplasia foi surpreendente, porque o medicamento deveria agir no sentido oposto: a eritropoetina, seu princípio ativo, é a proteína que manda o organismo produzir essas células. Por isso a EPO entrou na mira dos exames antidoping: a maior eficiência no transporte de oxigênio pode melhorar o desempenho de atletas.
A substância, que o corpo também produz naturalmente, nos rins, mostra-se útil para medicar quem tem problemas nesse setor, como portadores de insuficiência renal crônica. A biotecnologia permitiu a fabricação da EPO em grande quantidade com a ajuda de bactérias, enxertando nelas um trecho de DNA com a sequência necessária para sintetizarem eritropoetina de tipo humano. Cultivados em grandes tanques (biorreatores), os germes secretam maniacamente a proteína, sem parar.
Segundo reportagem no jornal "The New York Times" de 30 de julho, em dez anos cerca de 3 milhões de pessoas receberam EPO. Uma centena e meia de casos de reações adversas e uma única morte podem ser consideradas insignificantes, estatisticamente, mas é perturbador o fato de estarem ligadas a uma tecnologia até então vista como mágica.
Para o bem e para o mal, essa é a imagem pública da engenharia genética: uma bala de prata, capaz de derrotar a doença com um único disparo de sua própria munição bioquímica. Ora, organismos e células não são máquinas rudimentares, das quais se deve esperar sempre o mesmo resultado. Seus mecanismos são bem mais complexos, burilados por milhões de anos de seleção natural.
Suspeita-se que, naqueles casos de aplasia, o organismo dos pacientes se revelou capaz de reconhecer a proteína como estranha. Como é secretada por bactérias, talvez carregue alguma marca em sua conformação molecular que a denuncia para o vigilante sistema de defesa do corpo, como o espião alemão que se faz passar por inglês, mas não consegue fazer cálculos na língua de Shakespeare.
Se os anticorpos da pessoa que recebe a EPO de origem bacteriana atacassem apenas os espiões, vá lá. Ocorre que eles também começam a trucidar qualquer um que fale inglês, quer dizer, a EPO produzida no próprio corpo. O resultado é que o paciente perde a capacidade de fazer glóbulos vermelhos e pode morrer.
Todo medicamento tem algum efeito colateral, não havendo assim motivo para descartar a biotecnologia na produção de proteínas. Essa ainda é uma história de sucesso -inclusive do ponto de vista comercial: estima-se que o mercado para EPO seja de US$ 5 bilhões anuais.
O ensinamento a tirar do caso não é que a biotecnologia produz riscos no ritmo frenético com que bactérias produzem a proteína nos biorreatores, mas que os benefícios por ela secretados não podem ser dissociados de incertezas e riscos embutidos no mesmo processo.
Não existe bala de prata, enfim.


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