São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

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Ciência em Dia

Má ciência e mau jornalismo

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Soube por Mike Shanahan, editor do portal SciDev.Net (www.scidev.net), de um artigo publicado pelo jornal britânico "The Guardian" que vale por um curso inteiro de jornalismo científico: "Não me emburreça" (Don't dumb me down). O autor é Ben Goldacre e o texto foi publicado no espaço de sua coluna, "Má Ciência" (www.guardian.co.uk/life/badscience).


"Os meios de comunicação criam uma paródia da ciência para uso próprio. Aí eles atacam essa paródia como se estivessem criticando a ciência."


Goldacre tem o hábito salutar de desancar jornalistas de ciência britânicos na sua coluna. É uma espécie de ombudsman autodeclarado do jornalismo científico. O normal é ele fazer picadinho das pesquisas que viram manchetes, mostrando a inconsistência ou irrelevância dos estudos.
No último dia 8, ele resolveu fazer um balanço dessa compulsão demolidora e extrair daí uma tipologia das razões que levam repórteres e editores a cometerem tantas barbaridades. Queria responder à pergunta: "Por que a ciência nos meios de comunicação é com tanta freqüência sem sentido, simplista, enfadonha ou pura e simplesmente errada?"
A resposta é audaciosa: "Minha hipótese é que, na sua escolha das reportagens e na maneira como as cobrem, os meios de comunicação criam uma paródia da ciência para uso próprio. Aí eles atacam essa paródia como se estivessem criticando a ciência". Há três famílias de paródias, diz Goldacre: matérias excêntricas ("wacky"), matérias de meter medo ("scare") e matérias sobre grandes avanços ("breakthroughs").
No primeiro tipo cabem reportagens como aquelas que apontam o componente genético da infidelidade ou "o" neurônio que reage à imagem de Angelina Jolie. No segundo, a recorrente lenda de que a vacina MMR (sarampo, caxumba e rubéola) causa autismo. No terceiro, mais sutil, entram toneladas de reportagens em que avanços apenas incrementais são apresentados como grandes saltos da ciência.
Goldacre tem muita razão. O leitor que faça um exame das reportagens de ciência que encontra pela frente, sobretudo nas revistas semanais e na TV. Segundo o colunista do "Guardian", tudo decorre da incapacidade de jornalistas entenderem as minúcias -em geral estatísticas- dos artigos científicos. Cientistas sabem reconhecer quando um artigo é má ciência. Jornalistas, não.
O problema é que o serviço prestado por Goldacre vem turvado por certa intolerância (uma tentação sempre presente para quem chega ao ombudsmanato). Fala com desdém dos bacharéis em humanidades e os condena em bloco como relativistas culturais, interessados somente na desconstrução da ciência como produtora de inverdades travestidas de saber objetivo.
No fundo, parece que não aceita para cientistas a mesma vigilância que exerce sobre os jornalistas, como se houvesse alguma instituição acima da crítica. Neste caso, pode-se começar a criticá-lo questionando: por que os periódicos científicos, cuja seleção de artigos passa pelo crivo de cientistas praticantes ("peer-review"), admite a publicação de estudos que segundo ele são má ciência?

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro "O DNA" (Publifolha) e responsável pelo blog Ciência em Dia (http://cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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