São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009

Próximo Texto | Índice

Laboratório europeu vira "acelerador de boatos"

Pane que já dura um ano no experimento LHC alimenta especulações sobre riscos

Centro de física nuclear sediado na Suíça contrata pesquisador para desmentir ficções, mas ganha turistas após obra de Dan Brown

RAFAEL GARCIA
EM GENEBRA

O maior laboratório de física do mundo, o Cern, na fronteira da Suíça com a França, está com seu principal projeto atrasado em mais de um ano, mas promete dar a volta por cima até dezembro, assim que religar o LHC, o acelerador de partículas gigante. Avariado desde o ano passado, vítima de uma pane logo após sua inauguração, o experimento mais aguardado da década pelos físicos ainda não gerou nenhuma ciência, mas é cada vez mais eficiente em produzir outro tipo de informação: boatos.
Nos últimos dois anos, uma das principais ocupações dos relações-públicas do Cern (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear) tem sido a de desmentir histórias que se disseminam no público e apavoram leigos que nunca ouviram falar do experimento. As "lendas urbanas" em torno do laboratório vão desde falsas acusações de ligações terroristas até o risco do surgimento de um buraco negro que engoliria a Terra (veja quadro à direita).
O LHC (Grande Colisor de Hádrons) consiste em um túnel circular de 27 km dentro do qual núcleos de átomos são acelerados a velocidades próximas à da luz e postos em colisão para "quebrar" a matéria em seus subcomponentes elementares. A única intenção do laboratório, porém, é produzir conhecimento básico sobre física. Um dos principais objetivos é tentar detectar a partícula que, em teoria, é aquela que confere massa à matéria. Chamada pelos físicos de bóson de Higgs, ela acabou popularizada como "a partícula de Deus".
Com tamanho apelo midiático, não é surpreendente que o Cern tenha sido usado em romances como "Anjos e Demônios", de Dan Brown. Nas últimas semanas, porém, físicos do laboratório europeu estiveram mais ocupados com solicitações da imprensa a respeito de outra obra de ficção, "FlashForward", de Robert J. Sawyer, que virou seriado de TV.
No livro, as consciências de pessoas do mundo todo viajam ao futuro e ficam "fora do ar" no presente, efeito colateral dos experimentos do LHC. É tudo ficção, mesmo assim alguns cientistas já se apressaram em "desmentir" Sawyer.
"Aquilo que ele tenta sugerir é mais uma especulação. Para mim, a física que ele põe lá é implausível, se não for impossível", diz John Ellis, físico teórico que o Cern recrutou para comentar o livro. "Não quero dizer que projetar a consciência de alguém no futuro não seja uma ideia interessante, mas não vai acontecer da maneira como ele descreve."

Terrorismo
Um boato que exigiu um pouco mais de esforço dos físicos foi o de que um cientista que participava das preparações de experimentos em um dos detectores do LHC tinha ligações com a rede terrorista Al Qaeda.
Parte da imprensa especulou que o homem, funcionário de um instituto parceiro do Cern, poderia estar procurando material de pesquisa para usar em uma bomba. O Cern logo se pôs à disposição da polícia francesa. "Nenhuma de nossas pesquisas tem potencial para aplicação militar, e os resultados de todas elas são publicados abertamente", disse o laboratório no dia 9, logo após a prisão. A polícia ainda investiga o caso.
Uma coincidência infeliz ajudou a alimentar o medo de que algo grave estivesse sendo tramado: o setor do LHC em que o homem detido trabalhava é aquele que vai lidar com a antimatéria -material usado para produzir uma superbomba na trama de "Anjos e Demônios".

Turismo
A despeito da confusão, funcionários do Cern não parecem ter medo de uma eventual publicidade negativa que os escritores de ficção podem criai para o laboratório. Exemplares de "Anjos e Demônios" e "FlashForward" estão inclusive à venda na loja de souvenirs ao lado da recepção do Cern.
""Anjos e Demônios" foi uma coisa boa para nós, acho", diz James Gillies, porta-voz do Cern. Ele conta que, depois de 2005, o Cern começou a receber cada vez mais visitantes, em razão do sucesso do livro. "O tráfego no nosso website aumentou por um fator de dez e nunca mais caiu."
Segundo Gillies, muitos viram entusiastas do Cern após se darem conta de que o LHC não oferece nenhum risco à segurança mundial. O laboratório hoje recebe 60 mil pedidos de visitação por ano e consegue dar conta de metade deles.
A demanda motivou o Cern a montar uma exposição permanente no Globo da Ciência, seu famoso edifício esférico. Como o numero de cientistas a trabalhar na instituição também deve crescer nos próximos anos, o refeitório está sendo ampliado. Agora, com uma linha direta de bonde a ser construída ligando o centro de Genebra ao Cern, a demanda pelo turismo científico pode aumentar ainda mais.
"Nós não anunciamos o nosso programa de visitação, mas é uma pena. Acho que deveríamos anunciar", diz Gillies. "Muitos acham que o Cern é um lugar secreto e privado, quando na verdade é o oposto."


Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.