São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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Novo livro do médico e escritor britânico Oliver Sacks mistura recordações de infância com histórias de heróis científicos, metais perfeitos e lâmpadas incandescentes

A química das memórias

Natalie Angier
do "The New York Times Book Review"

Em um ponto de suas divertidas, melancólicas, generosas e perspicazes memórias, Oliver Sacks reconta uma cena de sua biografia favorita, a história de Marie Curie escrita por sua filha, Eve. Numa noite de insônia, curiosos sobre como estariam seus cristais de rádio, Marie e Pierre Curie voltaram ao laboratório, onde viram, escreve Sacks, "um brilho mágico em toda parte, vindo de todos os tubos e vasos e bacias contendo os concentrados de rádio". Os cientistas perceberam pela primeira vez que seu elemento era espontaneamente luminoso. Sua radioatividade lhe emprestava uma aura particular, auto-suficiente, que não precisava nem de oxigênio para persistir, como velas queimando no vazio.
Boa prosa é sempre descrita como sendo brilhante: luminosa, resplandecente, reluzente, incandescente, enfim, radiante. A narrativa de Sacks é tudo isso, e, às vazes, não importa o quão detida seja a sua leitura, você não consegue descobrir o que a torna tão iluminada.
Apesar de sua energia estilística, "Uncle Tungsten" (Tio Tungstênio) é sobre vários tipos de luz: a luz que veio em cores brilhantes e com odores fedorentos e explosões hilariantes nos experimentos de química do jovem Oliver em seu laboratório; a razão pela qual o tungstênio serve melhor que o carbono como filamento de lâmpadas e por que o tungstênio é, de fato, um "metal ideal" (daí o apelido do tio de Sacks, Dave, que o advogava); as emulsões fotossensíveis que Sacks laboriosamente misturava para si próprio, quando começou a praticar fotografia amadora; as baterias que ele fez com batatas, limões, cobre e zinco; e as descrições breves de refletores, raios catódicos, raios X e bombas termonucleares maciças no coração de cada estrela.
Acima de tudo, o livro é sobre a luz da mente humana, a capacidade que seres humanos têm de discernir padrões e organização em meio a uma natureza aparentemente caótica. Sacks rende homenagem para o seu panteão de heróis científicos. Alguns conhecidos, como Curie, John Dalton e Dimitri Mendeleiev. Outros, como o "poeta-químico" Humphry Davy, menos familiares, mas não menos dignos, pela sua pesquisa em eletroquímica e pelo isolamento de elementos como sódio, potássio, cálcio e magnésio -isso sem mencionar a exploração das propriedades anestésicas do óxido nitroso.
Os esboços históricos são permeados pelas histórias de Sacks e dos membros de sua família e, como frequentemente é o caso em se tratando de um livro dele, a obra é abundante em notas de rodapé -uma prática que (lemos isso em uma nota de rodapé) é inspirada por Mendeleiev, o químico que rascunhou a tabela periódica dos elementos e cujas publicações eram "cheias de exuberantes notas de rodapé", que ficaram tão enormes que "enchiam mais páginas que o texto".
Essas memórias são uma gema rara num gênero que ficou vulgar. Elas nos revelam muito mais que a vida e as lamentações de Oliver Sacks. Ao mesmo tempo, o autor não se esconde atrás de outras vidas ou pedantismo, nem exibe seu intelecto como uma espécie de característica sexual secundária. Pouco a pouco, nós passamos a conhecê-lo, e a suas mágoas, anseios emocionais e limitações. Por exemplo, no curso de uma dissertação sob outros aspectos triviais acerca da natureza química dos gases inertes, como o hélio, o radônio e o xenônio, que não podem se combinar com outros elementos para formar compostos, Sacks insere a simples e triste nota de rodapé, dizendo que ele se "identificava às vezes com os gases inertes... imaginando-os sozinhos, desconectados e querendo ligar-se".
Ainda assim, ele deixa claro que precisa desse afastamento. Ele o escolheu na mesma medida em que isso foi atirado sobre ele. Quando seu irmão Michael começou a sofrer alucinações e psicose, Sacks sentiu "uma simpatia apaixonada por ele" e "meio que sabia pelo que ele estava passando", mas também se sentiu distanciado do irmão que era mais próximo dele em idade. "Tinha de manter distância", escreve Sacks, "criar meu próprio mundo a partir da neutralidade e da beleza da natureza, para não ser varrido para o caos, a loucura e a sedução [de Michael"".
Sacks nasceu em Londres em 1933, o mais novo de quatro meninos. Seus pais eram médicos de agenda cheia. O pai quisera ser neurologista, mas decidiu que clínica geral seria algo mais "real"; e, apesar de Sacks nunca dizer explicitamente, sua própria opção por seguir carreira em neurologia não foi acidente algum.
Ele diz várias vezes que sente que seus pais eram cegos para seus problemas ou aflições, particularmente quando, em 1939, eles o mandaram embora de uma Londres fustigada pela guerra para um internato no interior chamado Braefield. O diretor, escreve, era um sujeito "perturbado pelo próprio poder... sádico e mau", que batia regularmente nos garotos "com prazer", até que eles "mal pudessem sentar, durante dias". Ele queria desesperadamente que seus pais o tirassem da escola. Uma vez, numa visita ao lar, ele trancou a cadela da família, Greta, num depósito de carvão do lado de fora da casa, onde ela quase morreu congelada. "Era uma mensagem", acrescenta, "chamando a atenção de meus pais para o meu depósito de carvão, Braefield".
Oliver, criado numa família judia praticante, teve sua fé massacrada pela guerra e por Braefield, misturando um "ateísmo furioso" com nostalgia.
Mas o garoto tinha uma grande rede de segurança. Sua família era grande, brilhante e extravagantemente composta -mais de cem primos e dezenas de tios e tias, cada um deles, na sua imaginação, com um dom de mago diferente. Sua tia Len lhe ensinou a beleza dos números e como a matemática está refletida em toda parte. Seu tio Dave convidou-o a conhecer sua fábrica de tubos a vácuo, onde ensinou a Sacks as propriedades dos metais e os conceitos de ácido e de base. Seu tio Abe lhe ensinou sobre física e espectroscopia.
Assim inspirado, Sacks levou um pequeno espectroscópio para casa e analisou as assinaturas espectrais de luzes fluorescentes e de chamas do fogão a gás. Montou seu próprio laboratório químico, onde manipulava materiais que nenhuma criança hoje em dia poderia tocar. Ele e seus dois irmãos mais velhos faziam "vulcões" com dicromato de amônia, ateando fogo a uma pirâmide de cristais alaranjados, que então ficavam vermelhos, lançavam fagulhas em todas as direções e inchavam como um Vesúvio em miniatura. Ele adorava as cores da química, os tons rosados do cobalto e do manganês, o azul escuro dos sais de cobre.
Sacks leu muito e profundamente sobre seus temas, mergulhando em textos dos séculos 18 e 19 para entender como as ciências evoluíram, e se voltou às biografias e autobiografias para captar a humanidade dos mestres da ciência. Ele tinha um quarto escuro e suas câmeras e tocava piano com alguma seriedade. Ler sobre a sua infância faz com que se perceba que lamentável sumidouro uma televisão -e, agora, o videogame- pode ser.



Uncle Tungsten: Memories of a Chemical Boyhood
De Oliver Sacks
337 páginas, Nova York, Alfred A. Knopf
US$ 25.






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