São Paulo, quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

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BIOMEDICINA

Cientista que criou ovelha Dolly defende modificação genética de embrião para eliminar doença hereditária

Wilmut ataca o veto à clonagem humana

IAN WILMUT
ESPECIAL PARA A "NEW SCIENTIST"

A clonagem humana chegou, finalmente. Entretanto, embora a equipe sul-coreana [que publicou na revista "Science" artigo sobre obtenção de células-tronco de um embrião humano clonado] tenha superado alguns obstáculos técnicos, as barreiras políticas à realização do potencial médico da clonagem continuam de pé.
Muitas pessoas fazem objeções à idéia de qualquer pesquisa com clonagem humana, mesmo as pesquisas com finalidades médicas, alegando que elas inevitavelmente abrirão a porta à clonagem reprodutiva, ou, de maneira mais geral, que realizar experimentos com embriões é imoral. Minha opinião é contrária: acho que a clonagem promete benefícios tão grandes que seria imoral deixar de fazê-la.
É por essa razão que vários laboratórios britânicos, incluindo o meu, pretendem pedir autorização às autoridades para estudar a clonagem humana no Reino Unido. E, embora eu continue radicalmente contrário à clonagem reprodutiva, encaro a possibilidade de que produzir bebês clonados seja desejável sob determinadas circunstâncias, tais como a prevenção de doenças genéticas.
A promessa terapêutica da clonagem humana reside nas células-tronco embrionárias (CTEs). Derivadas de embriões de seis dias, as CTEs são capazes de formar qualquer tipo de célula do corpo, tais como células sangüíneas ou nervosas. É possível extrair essas células de embriões avulsos produzidos por FIV (fertilização in vitro). Mas o processo tem um porém.
Os cientistas não têm como controlar a composição genética das células desses embriões. Isso cria um problema, se essas células-tronco forem utilizadas para regenerar tecidos destruídos por acidentes ou doenças: se elas não corresponderem geneticamente ao paciente, poderão desencadear uma reação imunológica.
A clonagem, porém, poderia superar esse problema e oferecer aos pacientes células-tronco que correspondessem aos tecidos necessários. Embora os críticos com freqüência digam que a clonagem terapêutica seria muito cara e pouco prática, acho que muitos dos problemas podem ser resolvidos. Mas, mesmo que a clonagem terapêutica não chegue ao estágio clínico, existem outras razões importantes pelas quais precisamos desenvolver a clonagem humana.
É provável que a primeira aplicação a ser feita seja para estudar doenças, especialmente moléstias hereditárias. No momento, muitas vezes é impossível tirar amostras, com segurança, de células afetadas de pacientes vivos. Além disso, quando o paciente começa a apresentar sintomas, isso quer dizer que a doença já vinha avançando há algum tempo.
Isso faz com que seja mais difícil descobrir se as modificações que verificamos nas células são diretamente ligadas à causa da doença, ou se são apenas efeitos secundários. O ideal seria podermos monitorar o avanço da doença à medida que ela se desenvolve no interior das células, para podermos identificar sua causa.
A clonagem nos permitiria recriar fora do corpo do paciente essas células doentes, com a mesma composição genética, e observar seu desenvolvimento desde o começo. Em princípio, pegaríamos uma célula de pele, faríamos um embrião clonado e então usaríamos suas células-tronco para criar culturas de qualquer tipo de célula. Essas culturas de células nos dariam o poder de praticar o tipo de genética sofisticada que, com freqüência, só podemos praticar com animais.


A clonagem humana não deve ser proibida, pois ela pode salvar muitos milhares de vidas


Meus colegas e eu estamos nos preparando para solicitar uma autorização para clonar células de doentes de esclerose lateral amiotrófica [também conhecida como doença de Lou Gehrig, ou ALS] no Reino Unido. Além de beneficiar as pesquisas sobre essa moléstia, esperamos que nossas técnicas possam ser adaptadas para pesquisas sobre outras enfermidades neurodegenerativas, tais como as doenças de Parkinson e de Alzheimer.
A clonagem humana também possui o potencial de revolucionar outras áreas da pesquisa biomédica. Uma área-chave é a de desenvolvimento e testes de novos medicamentos. É um fato surpreendente que as reações adversas a medicamentos receitados, mesmo quando esses medicamentos são utilizados corretamente, matem milhares de pessoas todos os anos. As empresas farmacêuticas não contam, no momento, com nenhuma maneira confiável de prever quais pacientes apresentarão essas reações negativas.
Na maioria dos casos, as variações de pessoa a pessoa se devem a diferenças nos genes que codificam as enzimas hepáticas que decompõem as drogas. A clonagem humana poderia ajudar de várias maneiras. Os pesquisadores poderiam clonar e criar culturas de células hepáticas de famílias que sofrem reações negativas a medicamentos. Tais reações com freqüência envolvem muitas enzimas diferentes, e poder estudar a atividade genética nas células hepáticas de pessoas suscetíveis permitiria aos cientistas identificar variações nas enzimas-chave.
As descobertas resultantes dessas pesquisas permitiriam às empresas farmacêuticas testar seus medicamentos novos com mais rapidez e eficácia do que se os usassem apenas com indivíduos suscetíveis, em testes clínicos. Esses pacientes também poderiam ser avisados em tempo de que determinadas drogas não são apropriadas para eles. No momento, as empresas farmacêuticas utilizam amostras hepáticas tiradas de cadáveres em autópsias, como parte de seus extensos testes pré-clínicos de segurança de drogas. Mas essas amostras freqüentemente são misturadas, e não se conhecem as sensibilidades dos doadores para diversas drogas.
Embora o setor de pesquisas provavelmente venha a ser o primeiro beneficiário da clonagem humana, os avanços mais instigantes virão na forma de clonagem terapêutica: maneiras de reparar ou curar órgãos doentes ou de reparar defeitos genéticos. Os transplantes de células-tronco geneticamente idênticas ás de seus receptores trazem a promessa de novos tratamentos, como reparos de músculos cardíacos danificados após um infarto.
É claro que ainda falta algum tempo para tudo isso se concretizar. Temos problemas técnicos a resolver, tais como a maneira de fazer com que as células-tronco embrionárias humanas possam formar diferentes tipos de célula, de maneira confiável.
Existem, também, aspectos relacionados à segurança: precisamos saber ao certo se essas células não irão provocar problemas como o câncer. Por último, há a questão da oferta reduzida de óvulos humanos, que ameaça restringir a utilização da clonagem terapêutica. Entretanto, esses problemas podem ser resolvidos.
É verdade que é pouco provável que a clonagem terapêutica seja prática em termos de uso rotineiro. Mas nem todas as doenças são iguais em termos de custo, e os tratamentos poderiam ser orientados de maneira a maximizar os benefícios. Uma pessoa mais velha que tivesse uma doença cardíaca, por exemplo, poderia ser tratada com células-tronco que não tivessem correspondência genética com ela, tomar drogas para suprimir seu sistema imunológico pelo resto da vida e conviver com os efeitos colaterais. Uma pessoa mais jovem se beneficiaria mais de células-tronco que tivessem correspondência perfeita com ela.
Além disso, é provável que as terapias se tornem menos caras e mais fáceis de usar à medida que a tecnologia for avançando. Uma maneira de superar a escassez de óvulos humanos poderia ser usar óvulos de vaca, apenas para a produção de células-tronco. Eu, pessoalmente, não teria problema com isso de um ponto de vista moral, já que, essencialmente, podemos enxergar os óvulos como simples sacos de proteínas. Mas seria preciso tomar ainda mais cuidado com o aspecto da biossegurança.
O uso mais radical da tecnologia de clonagem humana está no tratamento de doenças hereditárias, especialmente daquelas que afetam órgãos inteiros que não podem ser substituídos por células-tronco, tais como os pulmões. Isso também resolveria muitos dos problemas que vêm atingindo a terapia genética, tais como o risco de provocar câncer.
No momento, os portadores de determinadas doenças genéticas podem tentar não transmiti-las a seus descendentes, submetendo-se à FIV e submetendo os embriões resultantes a exames, de modo que apenas os saudáveis sejam implantados. Mas, se nenhum dos embriões criados for apropriado, o casal enfrentará mais uma rodada de tratamento invasivo para criar outros.
Existe uma outra maneira. Em março de 2003, Thomas Zwaka e James Thomson, da Universidade do Wisconsin, em Madison (EUA), encontraram uma maneira de substituir com precisão os genes defeituosos em células-tronco embrionárias por cópias saudáveis. Essa precisão significa que há poucas chances de um gene acabar no lugar errado, provocando problemas. Mas como pode o gene terapêutico ser inserido em todas as células do corpo?
É aqui que a clonagem poderia ajudar. Em primeiro lugar, criaríamos um embrião normal, com a ajuda da FIV. Em seguida, pegaríamos as células-tronco embrionárias desse embrião e corrigiríamos o gene doente, com a ajuda da engenharia genética.
Entretanto, as células-tronco embrionárias, sozinhas, não podem ser utilizadas para reconstituir o embrião da qual vêm. Para isso, pegaríamos o núcleo de uma dessas células-tronco embrionárias corrigidas e o transferiríamos para um óvulo. O embrião resultante seria o gêmeo idêntico do embrião original, mas com o gene doente corrigido em cada uma de suas células.
Esse embrião poderia, então, ser implantado no útero de sua mãe para se tornar um bebê. Essa criança seria um clone humano, mas seria o clone de um indivíduo novo, não de um de seus pais. Essa forma de clonagem não geraria os mesmos problemas éticos e sociais que a clonagem reprodutiva.
É claro que a questão da segurança ainda estaria presente. Por enquanto, ainda sabemos pouco demais sobre o que acontece com os genes num núcleo, durante a clonagem, para cogitarmos a possibilidade de criar uma criança dessa maneira.
Mas isso não deveria nos impedir de desenvolver uma tecnologia que possui um potencial tão grande de ajudar tantas pessoas. A clonagem humana não deve ser proibida. Ela pode salvar muitos milhares de vidas.

Ian Wilmut trabalha no Instituto Roslin, perto de Edimburgo Escócia), no Reino Unido
Tradução de Clara Allain


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