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+ ciência
Oficina que produzia material para exportação indica que egípcios
o usavam como arma diplomática no Mediterrâneo
Faraós de vidro
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
O brilho do ouro cercava os
faraós por todos os lados,
na vida e na morte. Que o
diga a famosa máscara
mortuária do rei-menino Tutancâmon -ou o sarcófago feito especialmente para abrigar suas vísceras, reproduzido nesta página. Uma dupla
de arqueólogos, no entanto, acaba
de desenterrar evidências de que um
tesouro muito mais prosaico pode
ter ajudado a consolidar a riqueza e
o poderio do Egito antigo: blocos
não-trabalhados de vidro colorido.
Thilo Rehren e Edgar B. Pusch, do
Instituto de Arqueologia do University College (Reino Unido) e do Pelizaeus-Museum de Hildesheim (Alemanha), descobriram o que só pode
ser descrito como um embrião de
indústria do vidro em Qantir-Piramesses, a leste do delta do Nilo. Datado da segunda metade do século
13 a.C., o complexo de oficinas revela um prelúdio de linha de montagem, cheio de passos complexos e
especializados. O objetivo final era
obter lingotes de vidro pré-trabalhado, prontos para a venda nos mais
diversos mercados do domínio dos
faraós e talvez além, por toda a bacia
do mar Mediterrâneo.
Os achados podem ser o golpe de
misericórdia na teoria de que a produção do vidro floresceu na Mesopotâmia. "Os objetos de vidro mais
antigos foram encontrados nessa região [com idade em torno de 1500
a.C.], e se presumia que eles tinham
sido fabricados lá. Infelizmente, nenhum centro de produção foi descoberto. O sítio mais antigo no Egito
onde se acredita que o processo
acontecesse é Malkata [cerca de cem
anos mais novo], mas não se acharam fornalhas lá. Pouco depois nós
temos Amarna, onde há fornalhas
que provavelmente produziam vidro [bruto], moldes de lingotes e vasilhas de vidro acabadas", contou à
Folha Caroline Jackson, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Sheffield, no Reino Unido.
Jackson, que não esteve envolvida
nas escavações, comentou o estudo
na última edição da revista americana "Science" (www.sciencemag.org), onde o trabalho saiu.
De qualquer maneira, o mistério
ainda predominava: haveria um local de produção primária, uma espécie de vale do Silício do fim da Idade
do Bronze (sem trocadilho, já que o
vidro é mesmo feito a partir do elemento que integra os microchips)? É
o tipo de questão que só as evidências arqueológicas são capazes de
responder a contento.
Oficinas faraônicas
Os achados de Rehren e Pusch em
Qantir-Piramesses permitem emitir
um sonoro "sim" a essa pergunta. A
dupla escavou e analisou milhares
de fragmentos de cerâmica, correspondentes a pelo menos 250 recipientes, que denotam vários passos
do processo de fabricação. O primeiro passo era aquecer quartzo pulverizado -a principal matéria-prima
usada para fabricar vidro na Idade
do Bronze- até a temperatura (relativamente) amena de 900C. "Isso
era aparentemente feito em vasilhas
domésticas ovóides, como as usadas
para armazenar cerveja", escrevem
os pesquisadores.
O resultado ainda era bastante tosco, com grãos de quartzo residuais e
bolhas de ar. Por isso, era esmigalhado de novo, para ficar homogêneo, e
aquecido a mais de 1.000C em recipientes cilíndricos, junto com corantes minerais (em Qantir-Piramesses, a cor obtida era principalmente azul ou vermelha, com variantes). Estava pronto o lingote, um
cilindro de vidro não-trabalhado fácil de ser transportado.
"Os lingotes provavelmente eram
quebrados e derretidos de novo [pelo consumidor final]", explica Jackson. "Derreter de novo o vidro não
exige uma temperatura tão alta
quanto sua fabricação. Quando ficasse mole, ele poderia ser transformado em contas e apertado contra
moldes para produzir placas e outras contas. Esse tipo de material foi
achado no Egeu [o pedaço do Mediterrâneo que banha a Grécia e os
Bálcãs]. Nessa época, o vidro não era
soprado, como se faz hoje: era preciso despejá-lo em moldes ou apertá-lo em torno deles. Era o que acontecia com os recipientes de vidro, que
eram produzidos enrolando o vidro
em torno de um núcleo, feito de cerâmica ou esterco, ou mergulhando
o núcleo no vidro derretido", afirma
a arqueóloga britânica. Essa última
fase do processo, pelo visto, não
acontecia em Qantir.
Prestígio
Se hoje não é óbvio por que alguém dar-se-ia a essa trabalheira para fazer um copo, é bom lembrar
que, no fim da Idade do Bronze, o vidro era tão raro e caro quanto a
maioria das pedras preciosas, graças
à sua beleza e às dificuldades técnicas de obtê-lo. Aliás, os corantes
aplicados ao material tinham justamente a intenção de torná-lo mais
parecido com turquesa e lápis-lazúli,
dois minerais que eram presença
obrigatória em qualquer funeral de
luxo em Babilônia ou Tebas.
O que nos leva à implicação mais
interessante do trabalho: "As evidências de Rehren e Pusch, junto
com o material publicado sobre os
sítios de Malkata e Amarna, certamente apontam para uma influência
grande [do Egito] sobre a produção
de vidro. Outras áreas, como o Egeu
e o sul da Europa, usavam esse vidro
para produzir artefatos. Não dá para
provar que o Egito monopolizava
essa produção, mas as evidências já
sugerem isso", diz Jackson.
A distribuição dos lingotes de vidro como bens de prestígio (termo
usado pelos arqueólogos para se referir a qualquer coisa que a elite use
para afirmar seu status) certamente
era um dos elementos da diplomacia
egípcia. Muitos deles devem ter chegado às mãos de outros povos não
como mercadoria, mas como presentes -um análogo da Idade do
Bronze para os espelhos e machados
que os portugueses se cansaram de
distribuir na costa brasileira a partir
do século 16.
Acontece que os séculos 13 a.C. e 12
a.C. estão entre os mais turbulentos
da história humana. Todos os grandes reinos do Oriente Próximo foram para o buraco no espaço de uns
cem anos -com a notável exceção
do Egito, que escapou por muito
pouco. As causas desse holocausto
ainda são controversas, mas há fortes indícios de que ataques-surpresa
de bárbaros do sul da Europa (conhecidos coletivamente nas inscrições egípcias como Povos do Mar)
tenham muito a ver com isso.
Em parte, a sobrevivência egípcia
se deveu ao fato de que os faraós empregavam soldados da mesma procedência que o inimigo (entre eles os
chamados "Shardana", provavelmente da Sardenha). Será que os
presentes de vidro colorido ajudaram a comprar a lealdade dos bárbaros? Ainda é cedo para dizer, adverte
Jackson. "Acho que o vidro era só
parte do processo, embora ajudasse
na manutenção dessas alianças." De
qualquer maneira, não é improvável
imaginar que os pés dos faraós não
eram de barro, como diz o provérbio
-mas de vidro.
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