São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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CIÊNCIA
Michel Serres fala da relação entre as ciências "duras" e as humanas
A conexão

MARCELO GUIMARÃES LIMA
especial para a Folha

Desde os anos 60, com a publicação da série de livros "Hermes", o trabalho de Michel Serres tem se afirmado como uma das mais instigantes reflexões sobre a ciência de nosso tempo, sobre as relações entre a filosofia contemporânea e a sua história e sobre a história das ciências e as ciências atuais na conjunção de um pensamento ao mesmo tempo epistemológico, ético e estético. Sua obra constitui um desafio a certos dualismos "básicos" na cultura moderna, que separa as ciências humanas, a tradição dos estudos clássicos e as chamadas ciências "duras".
Serres veio a São Paulo para abrir o 1º Congresso Internacional do Desenvolvimento Humano na Universidade São Marcos (16 a 18 de setembro) e para o lançamento, no Brasil, de seu livro de entrevistas "Luzes", pela Unimarco Editora. Amanhã, participa do programa "Roda Viva", na TV Cultura. Nesta entrevista, o filósofo francês fala sobre as perspectivas da relação entre as humanidades e as ciências "duras".

Folha - As questões da comunicação, da educação e do desenvolvimento cultural formam o tema geral da conferência que você veio abrir e o ocuparam ao longo de suas obras. Como refletir sobre as novas possibilidades e os novos desafios que o desenvolvimento tecnológico apresenta neste final de século para as formas da educação e da comunicação e que impacto tem e terão na evolução (ou involução) das formas culturais?
Serres -
Primeiramente, como cada mudança de suporte de informação tem trazido na história transformações consideráveis nas maneiras de vida (por exemplo, a invenção da escritura ou dos processos de impressão), devemos esperar mudanças igualmente radicais no futuro. Em segundo lugar, entre estas mudanças, as da educação e dos modos de pensar serão importantes, com outras funções da memória, da imaginação, da própria razão. E, finalmente, essa reflexão deve responder de maneira otimista às questões do futuro: realmente, eu penso que o ensino a distância, mais barato que o tradicional, poderá dar aos mais desfavorecidos acesso ao conhecimento .

Folha - O sr. refletiu recentemente sobre a passagem de uma sociedade de "in-formação" para uma sociedade de formação contínua, uma sociedade pedagógica. Segundo o Iluminismo, o conhecimento libertaria a humanidade. Aparentemente, a sociedade que estamos construindo ao fim do milênio nega, na prática (não necessariamente na sua ideologia), a equação de conhecimento e liberdade. A sociedade pedagógica correria o risco de confundir fins e meios, de perder de vista as metas de autonomia pessoal e liberdade social que são, ou deveriam ser, a finalidade do processo educacional?
Serres -
Essa questão é provavelmente a mais importante, pois ela se refere ao nosso destino, hoje. Realmente, o conhecimento e o ensino serão decisivos para as pessoas e os grupos no mundo de amanhã. Como eu sempre me considerei herdeiro do Iluminismo, espero que o conhecimento seja ainda liberador. Caso contrário, podemos sempre tentar a ignorância! É claro que as pressões sociais que pesam sobre o conhecimento parecem fazer dele um espaço ordinário onde prevalece a lei do mais forte.
Mas não é certo, primeiramente, que o conhecimento individual dependa completamente das condições institucionais. A história das ciências que eu pratico há muito tempo, mostra suficientemente que a invenção é com frequência o produto de indivíduos solitários e, para dar um exemplo, uma porcentagem considerável de Prêmios Nobel obtém a honraria graças a invenções que a coletividade científica não quis financiar, julgando-as sem valor. A coletividade e as instituições são tão pesadas que elas encorajam tudo, exceto a inteligência.
O dogma de acordo com o qual as ciências avançam pelo debate e pelas querelas me parece frequentemente falso, pois essas discussões desperdiçam mais tempo do que ganham e eu não conheço um caso onde a invenção se originou realmente dessa disputa. Por outro lado, o vencedor, nesse tipo de batalha, raramente é o mais inventivo ou mais produtivo, mas o gângster melhor dotado em política; não o mais forte na disciplina, mas o mais forte na polêmica. A vida acadêmica de hoje mostra claramente que os que dirigem nunca não são os que trabalham, ainda menos aqueles que inventam. Também aí, o mais forte é raramente o mais inventivo. De resto, as instituições poluem o conhecimento muito mais do que o condicionam . É então necessário, eu acredito, relativizar a sociologia das ciências, o neodarwinismo americano do qual você fala, como também o modelo dialético continental. Em resumo, o coletivo e a batalha eclipsam muito o conhecimento e o favorecem muito menos do que se crê. A luta de todos contra todos no conhecimento favorece a luta e não o conhecimento. Inversamente, a cultura permite a um homem culto não esmagar ninguém sob o peso de sua cultura. O saber permite aquele que sabe evitar fazer a guerra em nome do saber; caso contrário, não se trata de uma cultura ou do saber, mas somente de armas letais.
Outro exemplo: se você tem e me dá US$ 20, no final, eu tenho US$ 20 e você não tem mais nada. Se você sabe um teorema e me ensina, ao final eu tenho o teorema, mas você o conserva também. Então, o conhecimento não obedece às leis da troca mercantil, ele tem mesmo a virtude de fazer exatamente o oposto: em vez de um jogo de resultado nulo, ele suscita a multiplicação de seu valor.
Desse modo, nós não podemos aplicar aqui lógicas em vigor na economia ou na seleção natural: o darwinismo social é uma ideologia de cunho fascista; o darwinismo intelectual seria algo melhor?
Existe então ainda lugar para o trabalho solitário do indivíduo, para uma cultura que faça da vida uma vida livre, para um compartilhar do conhecimento que o multiplique gratuitamente e não aumente a miséria. No momento, eu só vejo a via da formação e da educação para a liberação dos homens. Eu permaneço otimista em relação às novas tecnologias que, abrindo, no momento, um espaço sem direito legal estabelecido, oferecem a formação aliviando ao mesmo tempo as pressões financeiras e sociais. O custo de se ramificar na Internet é infinitamente menor que o de um campus, com laboratórios, bibliotecas e salas de aula. Mas, nessa questão que diz respeito ao futuro, a discussão permanece aberta.

Folha - Conectar as humanidades e as chamadas ciências "duras" tem sido um dos seus objetivos principais ao longo de toda uma vida de reflexão. Recentemente, o chamado "caso Sokal" mostrou que, pelo menos no que diz respeito à "opinião pública", ou, mais corretamente, a um setor largo ou proeminente dos meios de comunicação de massas no EUA e Europa, o fosso entre as humanidades e as ciências é tão grande hoje como sempre foi: um obscuro professor de física de Nova York que ganhou celebridade imediata exibindo sua ignorância filosófica publicamente e atacando com ciúmes territoriais filósofos, principalmente franceses, que ousaram engajar, imaginar, representar ou interrogar as ciências em seus trabalhos filosóficos. No ambiente de meios de comunicação de massas de hoje, a reflexão e o pensamento especulativo tornam-se espetáculo. Em nome da verdade como espetáculo, a filosofia é espetacularmente condenada, e os domínios do conhecimento salvaguardados. Com que resultado?
Serres -
Eu não conheço bem o "caso Sokal", mas acredito sinceramente que terá produzido um benefício verdadeiro que consiste em recomendar prudência a todos os escritores ou jornalistas quando eles falam da ciência. Muitos filósofos, sociólogos ou outros especialistas falam de ciências, realmente, sem respeitar as regras elementares de treinamento e prática que elas implicam. De vez em quando, é necessário dizer isso a eles, até mesmo de maneira dura e, nesse ponto, Sokal não foi o primeiro; é necessário então primeiramente agradecê-lo por isso. Uma mudança de paradigma, como transformação da visão do mundo, vem frequentemente de um pensamento filosófico. E as "humanidades" contêm um imenso tesouro de reflexão cuja ciência utiliza, às vezes muito tempo depois. Fazer a ponte entre os dois acelerará ainda a invenção. Finalmente, se a filosofia, como você diz, é condenada, eu ouso dizer que ela já está habituada a tanto, pois, na história, as instituições oficiais, guardiãs da verdade, sempre condenaram, de um modo ou de outro, a filosofia. Ela está sempre em vias de morrer para fazer nascer a ciência. Isso não é grave: precisamos nos consolar porque é o risco da profissão, e não há profissão sem risco.


Marcelo Guimarães Lima é professor no Instituto de Arte de Chicago e na Universidade De Paul, em Chicago (EUA).

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