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CIÊNCIA
Michel Serres fala da relação entre as ciências "duras" e as humanas
A conexão
MARCELO GUIMARÃES LIMA
especial para a Folha
Desde os anos 60, com a publicação da série de livros "Hermes",
o trabalho de Michel Serres tem se
afirmado como uma das mais instigantes reflexões sobre a ciência
de nosso tempo, sobre as relações
entre a filosofia contemporânea e
a sua história e sobre a história
das ciências e as ciências atuais na
conjunção de um pensamento ao
mesmo tempo epistemológico,
ético e estético. Sua obra constitui
um desafio a certos dualismos
"básicos" na cultura moderna,
que separa as ciências humanas, a
tradição dos estudos clássicos e as
chamadas ciências "duras".
Serres veio a São Paulo para
abrir o 1º Congresso Internacional do Desenvolvimento Humano na Universidade São Marcos
(16 a 18 de setembro) e para o lançamento, no Brasil, de seu livro de
entrevistas "Luzes", pela Unimarco Editora. Amanhã, participa do
programa "Roda Viva", na TV
Cultura. Nesta entrevista, o filósofo francês fala sobre as perspectivas da relação entre as humanidades e as ciências "duras".
Folha - As questões da comunicação, da educação e do desenvolvimento cultural formam
o tema geral da conferência que
você veio abrir e o ocuparam ao
longo de suas obras. Como refletir sobre as novas possibilidades e os novos desafios que o
desenvolvimento tecnológico
apresenta neste final de século
para as formas da educação e da
comunicação e que impacto
tem e terão na evolução (ou involução) das formas culturais?
Serres - Primeiramente, como
cada mudança de suporte de informação tem trazido na história
transformações consideráveis nas
maneiras de vida (por exemplo, a
invenção da escritura ou dos processos de impressão), devemos
esperar mudanças igualmente radicais no futuro. Em segundo lugar, entre estas mudanças, as da
educação e dos modos de pensar
serão importantes, com outras
funções da memória, da imaginação, da própria razão. E, finalmente, essa reflexão deve responder de maneira otimista às questões do futuro: realmente, eu penso que o ensino a distância, mais
barato que o tradicional, poderá
dar aos mais desfavorecidos acesso ao conhecimento .
Folha - O sr. refletiu recentemente sobre a passagem de
uma sociedade de "in-formação" para uma sociedade de formação contínua, uma sociedade
pedagógica. Segundo o Iluminismo, o conhecimento libertaria a humanidade. Aparentemente, a sociedade que estamos construindo ao fim do milênio nega, na prática (não necessariamente na sua ideologia), a
equação de conhecimento e liberdade. A sociedade pedagógica correria o risco de confundir fins e meios, de perder de
vista as metas de autonomia
pessoal e liberdade social que
são, ou deveriam ser, a finalidade do processo educacional?
Serres - Essa questão é provavelmente a mais importante, pois
ela se refere ao nosso destino, hoje. Realmente, o conhecimento e o
ensino serão decisivos para as
pessoas e os grupos no mundo de
amanhã. Como eu sempre me
considerei herdeiro do Iluminismo, espero que o conhecimento
seja ainda liberador. Caso contrário, podemos sempre tentar a ignorância! É claro que as pressões
sociais que pesam sobre o conhecimento parecem fazer dele um
espaço ordinário onde prevalece a
lei do mais forte.
Mas não é certo, primeiramente, que o conhecimento individual dependa completamente das
condições institucionais. A história das ciências que eu pratico há
muito tempo, mostra suficientemente que a invenção é com frequência o produto de indivíduos
solitários e, para dar um exemplo,
uma porcentagem considerável
de Prêmios Nobel obtém a honraria graças a invenções que a coletividade científica não quis financiar, julgando-as sem valor. A coletividade e as instituições são tão
pesadas que elas encorajam tudo,
exceto a inteligência.
O dogma de acordo com o qual
as ciências avançam pelo debate e
pelas querelas me parece frequentemente falso, pois essas discussões desperdiçam mais tempo do
que ganham e eu não conheço um
caso onde a invenção se originou
realmente dessa disputa. Por outro lado, o vencedor, nesse tipo de
batalha, raramente é o mais inventivo ou mais produtivo, mas o
gângster melhor dotado em política; não o mais forte na disciplina, mas o mais forte na polêmica.
A vida acadêmica de hoje mostra
claramente que os que dirigem
nunca não são os que trabalham,
ainda menos aqueles que inventam. Também aí, o mais forte é raramente o mais inventivo. De resto, as instituições poluem o conhecimento muito mais do que o
condicionam . É então necessário,
eu acredito, relativizar a sociologia das ciências, o neodarwinismo
americano do qual você fala, como também o modelo dialético
continental. Em resumo, o coletivo e a batalha eclipsam muito o
conhecimento e o favorecem
muito menos do que se crê. A luta
de todos contra todos no conhecimento favorece a luta e não o conhecimento. Inversamente, a cultura permite a um homem culto
não esmagar ninguém sob o peso
de sua cultura. O saber permite
aquele que sabe evitar fazer a
guerra em nome do saber; caso
contrário, não se trata de uma cultura ou do saber, mas somente de
armas letais.
Outro exemplo: se você tem e
me dá US$ 20, no final, eu tenho
US$ 20 e você não tem mais nada.
Se você sabe um teorema e me ensina, ao final eu tenho o teorema,
mas você o conserva também. Então, o conhecimento não obedece
às leis da troca mercantil, ele tem
mesmo a virtude de fazer exatamente o oposto: em vez de um jogo de resultado nulo, ele suscita a
multiplicação de seu valor.
Desse modo, nós não podemos
aplicar aqui lógicas em vigor na
economia ou na seleção natural: o
darwinismo social é uma ideologia de cunho fascista; o darwinismo intelectual seria algo melhor?
Existe então ainda lugar para o
trabalho solitário do indivíduo,
para uma cultura que faça da vida
uma vida livre, para um compartilhar do conhecimento que o
multiplique gratuitamente e não
aumente a miséria. No momento,
eu só vejo a via da formação e da
educação para a liberação dos homens. Eu permaneço otimista em
relação às novas tecnologias que,
abrindo, no momento, um espaço
sem direito legal estabelecido,
oferecem a formação aliviando ao
mesmo tempo as pressões financeiras e sociais. O custo de se ramificar na Internet é infinitamente menor que o de um campus,
com laboratórios, bibliotecas e salas de aula. Mas, nessa questão
que diz respeito ao futuro, a discussão permanece aberta.
Folha - Conectar as humanidades e as chamadas ciências "duras" tem sido um dos seus objetivos principais ao longo de toda uma vida de reflexão. Recentemente, o chamado "caso Sokal" mostrou que, pelo menos
no que diz respeito à "opinião
pública", ou, mais corretamente, a um setor largo ou proeminente dos meios de comunicação de massas no EUA e Europa,
o fosso entre as humanidades e
as ciências é tão grande hoje como sempre foi: um obscuro professor de física de Nova York
que ganhou celebridade imediata exibindo sua ignorância filosófica publicamente e atacando com ciúmes territoriais filósofos, principalmente franceses,
que ousaram engajar, imaginar,
representar ou interrogar as
ciências em seus trabalhos filosóficos. No ambiente de meios
de comunicação de massas de
hoje, a reflexão e o pensamento
especulativo tornam-se espetáculo. Em nome da verdade como espetáculo, a filosofia é espetacularmente condenada, e
os domínios do conhecimento
salvaguardados. Com que resultado?
Serres - Eu não conheço bem o
"caso Sokal", mas acredito sinceramente que terá produzido um
benefício verdadeiro que consiste
em recomendar prudência a todos os escritores ou jornalistas
quando eles falam da ciência.
Muitos filósofos, sociólogos ou
outros especialistas falam de ciências, realmente, sem respeitar as
regras elementares de treinamento e prática que elas implicam. De
vez em quando, é necessário dizer
isso a eles, até mesmo de maneira
dura e, nesse ponto, Sokal não foi
o primeiro; é necessário então
primeiramente agradecê-lo por
isso. Uma mudança de paradigma, como transformação da visão
do mundo, vem frequentemente
de um pensamento filosófico. E as
"humanidades" contêm um
imenso tesouro de reflexão cuja
ciência utiliza, às vezes muito
tempo depois. Fazer a ponte entre
os dois acelerará ainda a invenção. Finalmente, se a filosofia, como você diz, é condenada, eu ouso dizer que ela já está habituada a
tanto, pois, na história, as instituições oficiais, guardiãs da verdade,
sempre condenaram, de um modo ou de outro, a filosofia. Ela está
sempre em vias de morrer para
fazer nascer a ciência. Isso não é
grave: precisamos nos consolar
porque é o risco da profissão, e
não há profissão sem risco.
Marcelo Guimarães Lima é professor no
Instituto de Arte de Chicago e na Universidade De Paul, em Chicago (EUA).
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