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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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Ciência em Dia

É isso aí, companheiro

Marcelo Leite
editor de Ciência

Mesmo quem nunca votou em Fernando Gabeira, nem leu o livro "O que É Isso, Companheiro?", tem razões para admirar-se com sua coerência e com sua decisão de deixar o PT, depois dos safanões que o partido de Lula e Dirceu andou dando na política ambiental (para não falar da social, da econômica, da de direitos humanos etc., pois este não é o local apropriado).
Ambiente, porém, constitui um desses temas em que a complexidade -e portanto a pesquisa científica- é ingrediente fundamental. Gabeira, em seu discurso de despedida, pôs o dedo na ferida: o governo lulista parece estar impregnado de uma visão produtivista estreita da economia, como os dirigentes socialistas do Leste Europeu antes da queda do Muro de Berlim, em 1989.
A coisa pode ser resumida assim: se a saúde do ambiente ficar no caminho da meta de produção fixada, azar dela. Quem visitou a cidade de Bitterfeld, na antiga Alemanha Oriental, antes da reunificação do país em 1990, teve uma visão dantesca do que essa determinação revolucionária pode provocar na paisagem e na qualidade do ar. É óbvio que o desenvolvimentismo capitalista também pode engendrar desastres de igual calibre, como fica provado com a vizinha Cubatão, mas muita gente supunha que uma das coisas que estavam sendo revolucionadas na esquerda ocidental pós-Muro era sua visão da política ambiental.
É ocioso discutir, nesta altura, se o claro viés antiambiental do governo do PT decorre do passado stalinista de alguns de seus integrantes (mesmo porque muitos de seus críticos à esquerda não o são em menor medida), ou se, ao contrário, escorre da recém-adotada opção preferencial pelo capital, sobretudo o financeiro. Simplificando e reduzindo muito algo que os economistas e cientistas sociais deveriam estar esmiuçando melhor, funciona assim: para não cair em desgraça em Wall Street, o país precisa de quantidades crescentes de dólares; o agronegócio é no presente uma grande fonte de moeda forte; logo, vale tudo para favorecê-lo e às suas exportações.
A guinada pró-transgênicos do PT instalado no poder é apenas a ponta do iceberg. Gabeira, e mais discretamente a ministra Marina Silva, contribui para fazer dela algo com importância provavelmente maior do que de fato tem, no varejo -na medida em que a soja resistente a herbicida está longe de ser o mais problemático dos organismos geneticamente modificados. No atacado, porém, sua resistência pertinaz pode se revelar acertada, pois terá talvez forçado uma discussão e um controle públicos que, de outro modo, seriam soterrados sob o trator tecnocientificista da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança).
Engana-se mais uma vez quem acreditar que essa motoniveladora vai atropelar só a questão dos transgênicos. Ela já está abrindo o terreno para as estradas da soja no cerrado e na Amazônia, assim como para um acréscimo das taxas de desmatamento e uma revisão da política de demarcação de terras indígenas.
De um modo ou de outro, esse desenvolvimentismo empedernido tem sido a marca de Lula em seus primeiros dez meses no Planalto. Gabeira só erra ao dizer que ele, na questão dos transgênicos, foi mais longe do que FHC -que na realidade só não fez mais a favor deles porque não conseguiu. Os companheiros de Gabeira foram à Justiça e o impediram.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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