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Povos antigos não fizeram aterros no Pará, diz grupo
Tese vai contra a ideia de que a Amazônia foi ocupada por sociedade complexa
Áreas que abrigavam índios
pré-históricos na Amazônia
são naturais, indica estudo;
elas foram formadas pela
terra carregada por riachos
Reprodução
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Urna funerária
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Um grupo de geólogos acaba
de apimentar ainda mais uma
das maiores controvérsias da
arqueologia atual. Eles afirmam que os chamados tesos
marajoaras, grandes aterros
que abrigavam aldeias indígenas na pré-história, foram formados naturalmente, e não
construídos por povos antigos.
Se confirmada, a hipótese será um duro golpe na visão atual
dos arqueólogos de que a Amazônia foi habitada por sociedades complexas e altamente hierarquizadas, diferentes dos povos indígenas atuais.
Essa visão, que se estabeleceu na arqueologia sul-americana a partir dos anos 1980,
sustenta que as sociedades indígenas de hoje -geograficamente espalhadas, com população baixa e cultura material
relativamente simples- são resultado do genocídio praticado
pelos europeus na Amazônia a
partir do século 16.
E algumas das principais evidências em favor disso estão
justamente na ilha de Marajó,
no Pará, foz do rio Amazonas.
As elaboradas cerâmicas coloridas marajoaras, que vão de
urnas funerárias a tangas de
barro, são conhecidas desde o
século 19. E escavações feitas
na ilha a partir dos anos 1980,
sobretudo pela arqueóloga
americana Anna Roosevelt,
(então no Museu Field, da Universidade de Chicago), ligaram
a produção dessas cerâmicas à
construção dos tesos, estruturas de até 90 hectares de área
por 20 metros de altura no
meio da planície alagável.
Segundo Roosevelt, os tesos
foram erguidos por uma sociedade de ceramistas que habitou
Marajó e que teve seu apogeu
entre os anos 500 e 1500. Eles
serviriam de base para as aldeias (já que a região onde se
encontram alaga durante metade do ano) e de cemitério.
Como a produção de estruturas monumentais demanda a
mobilização de grandes quantidades de mão-de-obra, Roosevelt propôs que a sociedade
marajoara fosse um cacicado,
uma espécie de organização política intermediária entre uma
sociedade tribal e um Estado.
Trabalhos posteriores da arqueóloga brasileira Denise
Schaan, hoje na Universidade
Federal do Pará, sugeriram que
os tesos se articulavam em redes políticas regionais em vez
de um poder centralizado.
Paleocanais
O problema dessa interpretação arqueológica é que nunca
se encontraram, em Marajó,
vestígios de agricultura em
grande escala que pudessem
ter sustentado uma população
tão grande quanto Roosevelt,
Schaan e colegas supõem que
houvesse na ilha.
Várias soluções para o problema têm sido propostas nas
últimas duas décadas, mas o debate continua aberto.
Neste ano, num estudo publicado no periódico "Geoarchaeology", um trio de pesquisadores liderados pela geóloga
Dilce Rossetti, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) fornece uma nova interpretação: a maior parte da
monumentalidade dos tesos
marajoaras se deve não à ação
humana, mas a um processo
natural de deposição. A civilização marajoara teria simplesmente aumentado os aterros,
ampliando um trabalho realizado pela água.
Rossetti e seus colegas mapearam, usando imagens de satélite, a rede de paleocanais que
cobria grande parte de Marajó
até o fim da Era do Gelo, cerca
de 11 mil anos atrás. Como o nome indica, paleocanais são riachos pré-históricos, que secaram há muito tempo.
Esses canais transportavam
grandes quantidades de areia e
argila, que acabavam sendo depositadas em seus meandros.
Quando eles secaram, esses
bancos de areia acabaram virando zonas elevadas.
"Nós notamos a correspondência dos sítios arqueológicos
com os paleocanais", disse Rossetti à Folha, por e-mail.
Segundo Rossetti e seus
coautores, Ana Maria Góes e
Peter Mann de Toledo, o formato ovalado dos tesos é uma
pista de sua origem fluvial.
De posse das imagens de satélite, o grupo do Inpe também
foi a campo. Em Marajó, eles
perfuraram tanto os paleocanais quanto dois tesos arqueológicos, o Teso dos Bichos e o
Teso Santa Luzia. Em ambos
foram coletadas e datadas
amostras de sedimento de 18
metros de profundidade.
A análise dos testemunhos
(cilindros de sedimento de cinco centímetros de diâmetro)
mostra que só nos 2 metros de
cima (ou seja, as camadas mais
recentes) há vestígios de material arqueológico. Abaixo disso,
afirma Rossetti, "registra-se
que os sedimentos não foram
modificados depois de sua formação". Em bom português, os
humanos participaram da
construção dos tesos, mas só de
sua parte final.
Estruturas menos monumentais também demandariam menos mão-de-obra em
sua construção, o que abalaria
a visão dos arqueólogos de uma
civilização complexa.
Reversões
"Embora a questão seja interessante e válida, esse estudo
não a elucida", disse Roosevelt.
A americana aponta vários
problemas no trabalho, sendo o
principal deles uma metodologia inadequada para investigar
presença humana nos sítios.
Segundo a pesquisadora, que
se prepara para vir escavar na
Amazônia nas próximas semanas, perfurações usadas em
geologia, por exemplo, não conseguem "ver" objetos maiores
que 5 cm de diâmetro ou outros
vestígios de ocupação humana
-espacialmente diversificada.
É por isso que "buracos" feitos
por arqueólogos em um sítio
sempre têm pelo menos um
metro de lado.
Além disso, diz Roosevelt, os
autores registraram várias reversões de camadas de areia e
argila na coluna de sedimentos.
"Essas inversões são indicadores clássicos de atividade monticular [construção de aterros]", diz Eduardo Góes Neves,
arqueólogo da USP que escava
na Amazônia Central. "Os autores têm evidências de inversões e não perceberam isso."
Neves diz, no entanto, que
gosta do argumento do grupo
do Inpe e que ele pode explicar
mistérios como a falta de evidência de agricultura.
Rossetti admite que não domina os métodos arqueológicos, mas diz que suas evidências são bem completas. "Achamos interessante trazer esses
dados para serem analisados
pela comunidade arqueológica", afirma a pesquisadora.
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