São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2008

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O ideoduto de Mangabeira


Há grandeza nessa visão da vida amazônica; o que lhe falta é acuidade


D epois de trocar a aprazível Cambridge, Massachusetts, pela aridez de Brasília, Roberto Mangabeira Unger, o extraordinário ministro de Assuntos Estratégicos, baixou na Amazônia com comitiva de mais de 30 pessoas. Cheio de idéias. Fora de seu lugar natural, pareciam também fora de propósito.
Estava na lista o nome de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, que fez o caminho inverso (dos cafundós do Acre para o Plano Piloto), mas não deu as caras. Deu foi um cano, e logo depois de falar em São Paulo num simpósio... criacionista (mas isso são outros 500).
Assim funciona o governo. Dá na veneta de um ministro formular um plano grandioso para metade do país, e os outros o deixam falando sozinho. É bem verdade que o alcance das idéias de Mangabeira não deve animar ninguém a acompanhá-lo naquela altitude. Nem em pensamento. Sua idéia que mais chamou atenção, a ponto de ocupar manchete de primeira página do jornal "O Globo", foi a de aquedutos para levar água da Amazônia ao Nordeste. Direto da sobra "inútil" para a falta "calamitosa".
Simples. Tão simples que o próprio Mangabeira se perguntou se não seria ingênuo. Sua resposta é técnica: novas maneiras de conceber e construir aquedutos. "A razão, porém, acabará por assistir ao ingênuo, não ao técnico. O custo do transporte de água é relativo às tecnologias disponíveis para transportá-la", pontificou.
Empreiteiros devem ter aplaudido à beça. Engenheiros contraporiam, em reserva, que distância e valor por peso do bem a transportar também pressionam a equação, mesmo sem lastrear a imaginação. Sendo imponderáveis, não custa nada transportar muitas idéias -por exemplo- de avião. Mangabeira aproveitou o vôo para despejá-las em cascata sobre a comitiva brasiliense e as platéias amazônidas. Duas mais merecem comentário -uma deslocada, outra desinformada.
O ministro está preocupado com os índios da Amazônia: "Ameaçam afundar na desagregação social e moral -no ócio involuntário, no extrativismo desequipado, no alcoolismo e no suicídio". Para um filósofo e titular de Harvard, a incorreção antropológica soa chocante.
Além de não se justificar pelos valores, o dito tampouco se fundamenta em fatos. Pode valer para um ou outro indígena na Amazônia, mas não é a regra para os muitos povos que lá tiveram suas terras demarcadas e homologadas. Decerto se aplica à tragédia dos guaranis em Mato Grosso do Sul, que não fica na Amazônia, no entanto.
Mais alarmante é sua proposta de mobilizar o "potencial energético latente nas árvores -na celulose e na lignina". Em outras palavras, usar a floresta chuvosa para fazer combustível (álcool de madeira). Com "replantio constante das árvores", cuida de esclarecer o ministro.
É a prova cabal de que Mangabeira nada entende de mata amazônica. Apenas transfere para elas esquemas mentais lobrigados nos bosques temperados do hemisfério Norte. O potencial energético das árvores amazônicas já é mobilizado -à taxa de mais de 2 milhões de metros cúbicos por ano- na forma de carvão vegetal e ilegal. Tudo para alimentar uma dúzia de usinas de ferro-gusa no Pólo Carajás (Pará). A ferro e fogo, bem no estilo nacional.
Além disso, o filósofo desconhece que o manejo florestal, na Amazônia, prescinde do replantio de árvores. A reposição é feita naturalmente, se forem deixadas produtoras de sementes em densidade suficiente na mata. Há grandeza nessa visão da vida amazônica. O que lhe falta é acuidade.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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