São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

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O nascimento de uma polêmica partícula invisível

Idéia foi proposta como solução para mistério da física em 1930 pelo austríaco Wolfgang Pauli

CÁSSIO LEITE VIEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Caros Senhoras e Senhores Radioativos." Começava assim a carta, de 4 de dezembro de 1930, do físico austríaco Wolfgang Pauli (1900-1958) à sua colega e compatriota Lisa Meitner (1878-1968). Aquela página deveria ser lida para os participantes de um encontro científico em Tübingen (Alemanha). Pauli se desculpava pela ausência -teria de ir a um baile em Zurique (Suíça)- e aproveitava para propor uma hipótese e, com isso, solucionar um mistério que molestava a física da época.
A hipótese proposta: a existência de uma nova partícula, além das três conhecidas na época, ou seja, o elétron (carga elétrica negativa), o próton (positivo e habitante do núcleo atômico) e o fóton (partícula de luz). O mistério resolvido: o decaimento beta, um tipo de radioatividade emitida por certos núcleos atômicos.
Desde 1914, já se notava algo estranho com esse fenômeno, no qual -como se observava na época- um elétron era "cuspido" do núcleo. Porém, as contas do balanço energético não fechavam. Ao somar a energia do elétron expelido com a do novo núcleo produzido pelo decaimento, faltava ainda um "naco" -quase imperceptível, é verdade- de energia.
Isso intrigava os especialistas. O físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962), num ato de desespero, chegou a defender que a conservação de energia -um tipo de Santo Graal da física- não valeria para o decaimento beta. Só se redimiu dessa heresia em 1936.
Acreditou-se, inicialmente, que, em conjunto com o elétron, um raio gama era emitido. Porém, dois experimentos, em 1927 e 1930 -o segundo deles feito pela própria Meitner-, não comprovaram a suspeita. E a crise se avolumou.
Na carta, Pauli perfilou a nova partícula. Ela seria neutra (sem carga elétrica), praticamente sem massa e expelida juntamente com o elétron, carregando com ela o filão de energia faltante. Dois anos depois, o nêutron (companheiro do próton no núcleo e também sem carga) foi descoberto. Porém, foi logo destronado do posto de candidato à partícula de Pauli, pois sua massa era "enorme", praticamente igual à do próton.

Batismo
O físico italiano Enrico Fermi (1901-1954) decidiu, então, batizar a partícula de Pauli como neutrino (em italiano, pequeno nêutron). E usou-a para elaborar uma teoria elegante -válida até hoje- para explicar o decaimento beta. O fenômeno, assim, passou a ser o seguinte: um nêutron decai (se transforma) em um próton, sendo emitidos do núcleo um elétron e um neutrino -na verdade, um antineutrino, uma antipartícula. De quebra, a nova teoria extirpou pela raiz a crença de que os elétrons -e para alguns também os neutrinos- viviam no núcleo atômico.
Um fato curioso, porém pouco divulgado. Apesar da total falta de evidência sobre a realidade dos neutrinos, os físicos teóricos se sentiram muito confortáveis com a nova partícula. "Foi um caso único na história das partículas elementares", resumiu Abraham Pais, em sua monumental obra "Inward Bound" (Oxford University Press, 1988).
Ainda em 1934, cálculos mostraram que seria praticamente impossível detectar o neutrino. Para fazê-lo interagir com a matéria, seria necessária uma quantidade de água equivalente a dezenas de milhões de vezes a distância Terra-Sol. Porém, a engenhosidade humana driblou o problema, e, em 1955, um experimento nos Estados Unidos detectou indiretamente o primeiro dos três tipos de neutrino conhecidos hoje. A partícula fantasma se revelava a uma comunidade de físicos assombrada pela descoberta. Pauli estava certo.
Em 2002, nova surpresa: um experimento no Canadá mostrou que os neutrinos têm massa. E isso tem implicações profundas para entender a constituição e o próprio destino do Universo. Hoje, a pesquisa em neutrinos é uma das mais instigantes da física, e vários experimentos tentam desvendar propriedades da partícula que nasceu em uma carta bem humorada. Dois problemas atuais: saber o valor exato da massa e, mais intrigante, descobrir se o neutrino e o antineutrino são ou não a mesma partícula.
Se as dezenas de partículas elementares conhecidas hoje (elétrons, quarks, fótons etc.) formassem um tipo de liga de super-heróis, o neutrino seria certamente eleito pelos fãs o mais "cool" deles (bacana, em inglês). Ele pode atravessar incólume trilhões de quilômetros de chumbo, por exemplo. Neste exato momento, o leitor e seu exemplar do "Mais!" estão sendo perfurados por trilhões de neutrinos. Isso também ocorre à noite, quando eles, vindos do Sol, onde são produzidos, atravessam a Terra sem se chocar com nada. Sem contar que um ser humano gera outros 20 milhões de neutrinos por hora devido à presença de elementos radioativos no organismo. Sem dúvida, "cool".


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