|
Texto Anterior | Índice
+ Marcelo Leite
Dia sem índio
Em seu zelo de preservar os direitos de seis arrozeiros, o STF parece disposto a revogar os fatos
|
Ontem comemorou-se o Dia do
Índio. Na toada em que anda a
questão indígena, dia chegará
em que os índios não mais atrapalharão "os brasileiros" na sua tarefa histórica de construir uma nação destruindo a própria terra e sua gente.
Não era isso que pregava Cândido
Rondon. Nem, tampouco, o artigo 231
da Constituição brasileira: "São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos
os seus bens".
Faz só duas décadas que essa Constituição foi adotada pelo país. Não falta hoje quem a menospreze, por atrasada, corporativista, multiculturalista, sabe-se lá o quê. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Constituição, dá sinais de que enxerga nela, ou alhures, coisa mais importante que o artigo 231.
O STF se dispõe, segundo o prejulgamento de alguns ministros, a anular
e devolver à estaca zero mais de uma
década aplicada na identificação, demarcação e homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima. Em seu zelo constitucional de
preservar os direitos de seis arrozeiros contra milhares de macuxis, ingaricós, uapixanas, patamonas e taurepangues, parece disposto também a
revogar a objetividade dos fatos.
"A demarcação contínua é algo inusitado, jamais visto neste país", disse o
novo presidente do STF, Gilmar Mendes. "É claro que daria ensejo a esse tipo de resistência." Engana-se o ministro. Todos já vimos esse filme.
A Terra Indígena Ianomâmi existe
há 16 anos. Foi homologada de modo
contínuo, é quase seis vezes maior,
parte dela fica no mesmo Estado de
Roraima, em faixa de fronteira, e suscitou o mesmo tipo de resistência.
Nem por isso se desmembrou do Brasil a nação que militares e o que na
época se chamava de "direita" denunciavam ser a meta de religiosos e estrangeiros manipuladores de índios.
Segundo Mendes, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, quando na pasta
da Justiça sob Fernando Henrique
Cardoso, recomendara o modelo de
demarcação em ilhas, e não como território contínuo. É fato. Mas não que a
homologação contínua seja obra (só)
de Lula. Ainda na era FHC, outro ministro da Justiça, Renan Calheiros, tinha revogado a portaria de Jobim e reconstituído Raposa/Serra do Sol em
sua inteireza.
Disse mais o ministro Mendes: "Fiz
uma ponderação de que se deve discutir o modelo em ilhas de preservação.
O modelo é muito conflitivo. Precisamos discutir opções minimamente
viáveis. O que não pode é você criar
um Estado e depois criar uma reserva
que tenha 50%, 60% do seu tamanho.
Esse processo será um aprendizado
para o país".
Vê-se logo que o país nada aprendeu
com o caso dos ianomâmis e sua reserva "inviável". Mas basta a questão
numérica: Mendes reproduz sem
muita reflexão o argumento do governador roraimense de que seu Estado é
que estaria em vias de extinção; engana-se o ministro, de novo.
Raposa/Serra do Sol, se vingar, ocupará 7,8% dos 224.298,98 km2 de Roraima. É somando a área a outras três dezenas de terras indígenas do Estado
que se alcança a cifra de 46% do Estado -e não "50%, 60%".
Recomenda-se ao STF atentar para
outras lições da história do país. Pode
começar pela tragédia dos guaranis
em Mato Grosso do Sul, confinados
em suas "ilhas de preservação".
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas
Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia
( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
Texto Anterior: + Marcelo Gleiser: A lua está sempre no céu? Índice
|