São Paulo, quinta-feira, 20 de maio de 2010

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Guardar cobra é "bobagem", diz Isaias Raw

Para ex-presidente da Fundação Butantan, zoologia do instituto é "de quinta" e prioridade deve ser fabricação de vacinas

Paulo Vanzolini, da USP, afirma que coleção vitimada por incêndio no sábado tem valor inestimável, mas ciência não é de vanguarda


Rodrigo Paiva/Folha Imagem
Funcionários do Instituto Butantan tentam resgatar cobras chamuscadas em prédio interditado pela Defesa Civil em São Paulo

RICARDO MIOTO
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

O Butantan fez bem em deixar em segundo plano sua coleção biológica, disse à Folha o ex-presidente da Fundação Butantan, Isaias Raw.
Ainda muito influente no instituto, Raw afirma que a pesquisa realizada no acervo destruído pelo incêndio no sábado era de "quinta categoria". Mesmo após o desastre, ele defendeu a política de priorizar a fabricação de vacinas.
"Aquilo [o acervo] é uma bobagem medieval. Você acha que a função do Butantan é cuidar de cobra guardada em álcool ou fazer a vacina para as crianças?", disse. Para ele, "não dá para cuidar das duas coisas".
Cientistas ouvidos pela Folha reclamam que, durante a gestão da Raw, entre 1985 e 2009, a pesquisa com animais teria passado a ser vista como algo de pouca importância e recebido poucos recursos da Fundação Butantan, organização social gestora do instituto, que é do governo do Estado.
Segundo um deles, Raw teria "pegado birra" dos que trabalhavam junto ao acervo, por considerá-los improdutivos.
Foi sob Raw que o Instituto Butantan, por outro lado, tornou-se o grande fornecedor de vacinas do Ministério da Saúde.
"Se eles não receberam dinheiro é porque não mereciam. Eu recebo todo dinheiro que eu peço. A Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] deu aquele prédio. Eles fizeram uma merda naquele prédio. Nem compraram o alarme para incêndio, alarme para incêndio você compra na esquina hoje."
Segundo ele, foi um erro colocar os animais em álcool. "Isso é burrice, é para pegar fogo."

De segunda
"Não quero falar mal de colega, mas [o que Raw diz] é verdade. Desde o começo é uma herpetologia [estudo de répteis e anfíbios] de segundo grau", diz Paulo Vanzolini, 86, o mais importante zoólogo brasileiro vivo. "O Butantan nunca foi vanguarda cientificamente."
"Agora, isso não tem nada a ver com o valor da coleção. A coleção era independente do valor científico dos cientistas. Ela tinha grande valor científico, tinha 80 mil bichos."
Para Raw, a Fapesp também não errou caso não tenha dado dinheiro especificamente para criar um sistema anti-incêndio.
"Se eles receberam uma banana [da Fapesp], é porque eles mereceram uma banana. Alguém tem de dizer qual é a prioridade do Brasil."
A Fapesp, na verdade, deu dinheiro ao Butantan que poderia ter sido usado num sistema anti-incêndio. Em 2007 e 2008, como mostrou ontem a Folha, o instituto recebeu quase R$ 1 milhão para a chamada reserva técnica. A verba pode ser aplicada em infraestrutura e em equipamentos de pesquisa.

Investigação
A fundação funciona como braço operacional do Instituto Butantan e tem um orçamento de cerca de R$ 300 milhões.
Raw renunciou à presidência da fundação no ano passado. O Ministério Público investigava um esquema de desvio de verbas públicas que envolvia mais de R$ 35 milhões.
Antes da renúncia, Raw já tinha sido afastado preventivamente. Não existiam, porém, evidências de que ele tivesse se beneficiado do dinheiro.
Raw continua como cientista do instituto, mas foi encontrado ontem no prédio da fundação, onde, segundo funcionários, é presença constante.
"A fundação não poderia ter dado dinheiro [para segurança do prédio incinerado]. Eu tenho de guardar o dinheiro porque a vacina começa a ser feita no ano anterior, antes que o Ministério da Saúde encomende. Quando se vota o orçamento, às vezes já em maio, ele começa a pagar. Como vou fazer vacina se não tenho dinheiro?"
Raw criticou também os descendentes de Vital Brazil, um dos fundadores do Butantan, que disseram nessa semana que o patrimônio histórico do local tinha sido jogado "à última instância" e que o instituto tinha se tornado uma mera "fábrica da vacinas".


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