São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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Ciência em Dia

Sobre células e celebridades

Marcelo Leite
editor de Ciência

O ator e presidente norte-americano Ronald Reagan (1981-1989), que morreu há pouco, com 93 anos, após longo sofrimento com o mal de Alzheimer, tornou-se instantaneamente o maior símbolo de propaganda a favor da pesquisa com células-tronco embrionárias. Bastou que deixasse este mundo para que ganhasse mais visibilidade a carta que 58 senadores haviam enviado ao atual presidente, George W. Bush, pedindo reconsideração da política que dificulta a investigação com essas células.
Bush se mostrou resistente, ainda que por motivo polêmico: "A vida é uma criação de Deus, não uma commodity a ser explorada pelo homem", respondeu.
Células-tronco estão presentes na medula óssea e em vários tecidos do corpo. São capazes de dar origem a vários outros tipos de célula do organismo e, por essa razão, são também encaradas como grande promessa no combate a doenças degenerativas. As embrionárias, obtidas do interior de blastocistos (embriões com uma centena de células), figuram no topo da lista, pois podem dar origem ao maior número de tipos de célula.
Há pelo menos duas ironias embutidas nessa celebridade extra e póstuma de Reagan, a começar pelo fato de George W. ser beneficiário da voga ultraconservadora reavivada pelo próprio Reagan. A outra é que a luta de Nancy Reagan pela pesquisa com células-tronco embrionárias pouco potencial teria para ajudar seu marido, ainda que pudesse esperar muitos anos pelos frutos dessa investigação.
É curiosa a renitência dessa associação entre células-tronco e mal de Alzheimer no debate público sobre o emprego de embriões humanos em experimentos. Sempre que se mencionam doenças degenerativas que poderiam um dia ser tratadas com essas células, lá vem à baila o nome do neuropatologista alemão Alois Alzheimer (1864-1915), que descreveu a doença em 1906. É um equívoco.
A forma de doença que leva seu nome se caracteriza pela morte de neurônios e pela formação de placas no cérebro todo. É pouco provável que terapias celulares venham a resolvê-la, porque seria preciso encontrar uma maneira de disseminar as células reparadoras pelo órgão inteiro, o que está longe de ser trivial.
A popularidade do mal de Alzheimer em associação com células-tronco provavelmente decorre de uma contaminação semântica por outra doença degenerativa cerebral dotada de nome próprio, o mal de Parkinson, descrita em 1817 pelo médico britânico James Parkinson (1755-1824). Nesse caso, sim, as células-tronco têm potencial, pois se trata de uma disfunção totalmente localizada: os tremores e a rigidez muscular característicos resultam da destruição de neurônios especializados, produtores do neurotransmissor dopamina, numa área específica do tronco cerebral conhecida como "substantia nigra".
Para efeito de propaganda em favor da pesquisa com células-tronco embrionárias, nada melhor do que aproveitar essa associação natural entre os dois flagelos e alistá-los na batalha de convencimento dos senhores idosos, ou quase, que detêm o poder de decidir a latitude permissível de investigação científica em cada país. Mas fique o leitor avisado de que Reagan tem pouco a ver com isso.
Celebridade por celebridade, os defensores do estudo de células-tronco embrionárias ainda terão de contentar-se com o combativo ator Christopher Reeve, que encarnou Super-Homem e hoje está confinado a uma cadeira de rodas.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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