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Ao perdedor, as batatas
Decifração do DNA revela semelhanças entre parasita da malária e micróbio que causou a fome da batata na Irlanda no século 19
RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL
Certas pragas têm
mais em comum do
que a ciência imaginava. À primeira vista, uma doença que
mata 1 milhão de crianças africanas por ano nada teria a ver
com outra que destrói apenas
batatas e tomates. Mas a recente decodificação do material
genético deste ser matador de
plantas mostrou surpreendentes semelhanças com o parasita
causador da malária.
"Morcegos não são pássaros
/golfinhos não são peixes/oomicetos não são fungos", revela
para quem estiver interessado
a parte traseira de uma camiseta usada por membros do Laboratório Sainsbury, de Norwich, Reino Unido. Na frente,
uma árvore de família mostra a
posição dos tais oomicetos, parentes mais próximos de algas
marrons do que de fungos, animais e plantas verdes.
Parece e até age como um
fungo. Tanto que só em 2000 o
ser conhecido como Phytophthora infestans foi reclassificado como oomiceto graças a estudos sobre suas proteínas.
"Não, não é um fungo. Seus
parentes mais próximos são as
algas marrons. A próxima família é a dos alveolados, que incluem o parasita da malária",
disse a Folha a chefe do Laboratório Sainsbury, Sophien Kamoun, que sequenciou o genoma desse oomiceto.
O Phytophthora infestans é
um velho e letal conhecido da
humanidade, contudo. Nunca
na história deste planeta um
organismo influenciou tanto a
história de um país.
Na década de 1840 ele foi responsável por uma epidemia de
fome na Irlanda que matou 1
milhão de pessoas e fez outro
milhão imigrar, principalmente para os EUA. Os números
são imprecisos, mas ainda hoje
a população do país reflete a
enorme crise do século 19. Há
menos irlandeses em 2009 do
que havia em 1845 -6 milhões
hoje, 8 milhões então.
E ainda hoje o oomiceto causa seus estragos. No artigo descrevendo o sequenciamento do
seu genoma, publicado neste
mês na revista "Nature", a
equipe de quase cem pesquisadores lembra que ele causa perdas anuais de US$ 6,7 bilhões
em todo o mundo.
"São epidemias recorrentes.
Há uma acontecendo no tomate nos EUA bem agora. Mas nós
não somos dependentes de
uma monocultura como os irlandeses eram na década de
1840. Apesar de ele ainda causar doenças devastadoras, as
consequências sociais são diferentes", afirma Kamoun.
Manipulação
E o que este ser exótico tem a
ver com o outro?
Os dois são pragas manipuladoras das suas vítimas. E, apesar de serem diferentes e terem
alvos diferentes, usam táticas
semelhantes, como Kamoun e
colegas mostraram em um trabalho anterior, agora reforçado
pela soletração do DNA.
Parasitas e hospedeiros evoluíram ao longo de milhões de
anos numa espécie de corrida
armamentista. O parasita descobre uma nova arma, o hospedeiro cria (ou não) uma nova
defesa. Esses estilos de vida patogênicos surgem ao longo da
evolução biológica repetidamente, aparentemente sem relação entre si. Mas, como na
guerra, estratégia e tática tendem a se repetir.
Um excelente exemplo é a
chamada "ordem oblíqua". Um
exército atacante concentra
forças em um dos flancos do
inimigo, usando o que restou
para manter o resto da linha
inimiga no lugar. Com isso,
uma superioridade numérica
artificial pode ser criada pelo
lado mais fraco na batalha.
O tebano Epaminondas usou
essa tática para vencer os espartanos em Leuctra em 371
a.C.; Frederico, o Grande, rei da
Prússia, fez o mesmo para vencer os austríacos na batalha de
Leuthen em 1757.
Os oomicetos e os plasmódios causadores da malária
também não aprenderam suas
"táticas" um com o outro.
"Entretanto, estão emergindo evidências de que diferentes
patógenos podem compartilhar mecanismos de infecção",
escreveram Kamoun e mais
quatro colegas em um artigo na
"Nature Reviews". Os resultados de estudos recentes demonstram que o Plasmodium
falciparum e o Phytophthora infestans usam sinais bioquímicos equivalentes para penetrar
a "fortaleza" -as células, humanas e de plantas.
A importância disso é a possibilidade de estudos de uma
área darem ótimas pistas para
os da outra. Por exemplo, uma
descoberta importante do sequenciamento do genoma do P.
infestans foi a "estratégia de
duas velocidades". Partes do
genoma evoluem em ritmos diferentes. Uma delas, cheia de
repetições de DNA, consegue
mudar rapidamente e, com isso, rapidamente se adaptar ao
sistema de defesa das plantas.
E como já se sabia que esse
tipo de repetição de regiões de
DNA era capaz de aumentar a
inovação gênica, o processo deve ocorrer em algum grau em
outros genomas.
"Esse patógeno tem uma incrível capacidade de se adaptar
e mudar, e é isso que o torna
tão perigoso", declarou outro
coordenador do sequenciamento, Chad Nusbam, do Instituto Broad, dos EUA. "Esperamos que esse conhecimento
possa engendrar novos enfoques para diagnosticar e responder a surtos da doença."
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