São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

Próximo Texto | Índice

+ ciência

BANQUETE PRÉ-HISTÓRICO

Reprodução
Zoólito (escultura de pedra em forma de animal) desenterrado em um sambaqui de Santa Catarina



Análise de ossos de 12.500 pessoas datados de 4.000 a.C ao começo do século 20 mostra que índios do litoral catarinense tiveram a melhor qualidade de vida de todas as Américas


Claudio Angelo
editor-assistente de Ciência

Os povos que habitaram o litoral de Santa Catarina há mil anos tiveram a melhor qualidade de vida de toda a população das Américas nos últimos sete milênios, incluindo aí descendentes de europeus que viveram nos séculos 18 e 19 na América do Norte. A conclusão é de um estudo realizado durante mais de uma década, que envolveu 35 pesquisadores -três deles brasileiros- e acaba de ser publicado nos Estados Unidos e na Europa.
No livro "The Backbone of History" (A Espinha Dorsal da História), que saiu no mês passado pela Cam- bridge University Press, o grupo de antropólogos, médicos, historiadores e economistas coordenado por Richard Steckel, da Universidade de Ohio, e Jerome Rose, da Universidade do Arkansas (ambas nos EUA), apresenta a maior base de dados já construída sobre a saúde da população do continente americano. Foram analisados cerca de 12.500 esqueletos, datados entre 4.000 a.C e o começo do século 20. O levantamento buscou avaliar, nos ossos, indicadores de saúde como estatura média, estado dos dentes, grau de nutrição e doenças crônicas.
Todas as populações representativas do continente -nativos americanos e descendentes de europeus e de africanos- foram estudadas e agrupadas em um índice de qualidade de vida biológica. Esse índice ia de 0 (para indivíduos que morreram no nascimento) a 100 (para populações de esqueletos sem sinal de patologia).
O resultado surpreendeu os pesquisadores por mostrar que grupos indígenas americanos ocuparam tanto o primeiro quanto o último lugar no ranking. No alto do pódio estão os ceramistas das tradições umbu e itararé, de língua jê, que se instalaram nos sambaquis do litoral de Santa Catarina a partir do ano 1000. Eles tiraram nota 91,8, seguidos por povos caçadores-coletores da costa da Carolina do Sul, nos EUA (89,2), e pelos sambaquieiros que os antecederam também em Santa Catarina (87,1).
Num dos níveis mais baixos da escala se encontra, curiosamente, um povo que costuma ser lembrado como sinônimo de civilização e padrão de vida elevado: os maias da América Central, com índice de 58,4. A julgar pelos esqueletos, a saúde dos habitantes de Copán (atual Honduras), uma das mais opulentas cidades do Novo Mundo antes da conquista, era tão boa quanto a dos escravos negros do sul dos Estados Unidos, que tiveram o mesmo percentual no índice. Só era melhor que a dos índios pueblos do Novo México (53,5), famosos por construir edifícios junto a paredões de pedra.
O estudo, segundo Steckel, ajuda a confirmar uma antiga suspeita dos antropólogos: a de que a transição da vida de caça e coleta para a agricultura e a vida nas cidades teve seu preço em saúde. A tese foi lançada pela primeira primeira vez por Mark Cohen e George Armelagos no livro "Paleopatologia e as Origens da Agricultura", de 1984, mas até agora nenhum estudo extensivo do gênero havia sido realizado com as populações americanas. Para boa parte dos historiadores, o continente era uma espécie de paraíso em termos de qualidade de vida antes da chegada dos europeus, em 1492. "Nossos métodos põem esse debate numa perspectiva mais ampla", disse Steckel à Folha. Segundo o pesquisador de Ohio, foi surpreendente notar "o declínio de longo prazo na saúde na era pré-colombiana".

Ossos do ofício
Medir a qualidade de vida de populações que viveram há milênios e cujos únicos testemunhos às vezes são um punhado de esqueletos desconjuntados não é uma tarefa simples. Tudo o que se pode inferir é a chamada "qualidade de vida biológica", ou seja, os aspectos de saúde que chegaram a deixar marcas nos ossos de um indivíduo.
Para compor o índice, o grupo coordenado por Steckel e Rose usou sete indicadores de saúde: estatura média, saúde dental (presença ou não de cáries e abscessos), hipoplasias de esmalte (falhas na formação do esmalte nos dentes causadas por má nutrição ou doenças na infância), infecções ósseas, lesões traumáticas, doenças degenerativas nas juntas (causadas por esforços mecânicos repetidos) e hiperostose porótica -lesões causadas por deficiência de ferro em partes do crânio onde se produzem glóbulos vermelhos do sangue.
Não é uma medida livre de problemas. A ocorrência de doenças infecciosas, malária e verminoses não pode ser computada. Limitações cognitivas, cegueira e estados emocionais também não. "No entanto, essas limitações tendiam a expor o indivíduo a maior risco de morrer, e isso é capturado pelo índice", dizem os autores.
Embora não tenha sido possível avaliar todos os indicadores, por falta de esqueletos completos, os grupos do litoral catarinense estavam bem na fita. A análise nos crânios desenterrados em diversos sambaquis da região mostra poucas cáries e quase nenhum sinal de hiperostose porótica. Segundo o antropólogo Walter Neves, da USP, que realizou o estudo em Santa Catarina em colaboração com Verônica Wesolowski (a terceira brasileira do projeto, Maria Antonieta Costa, analisou esqueletos do deserto de Atacama, Chile), o bom estado dos ossos se deve ao ambiente costeiro, rico em peixe (fonte de proteína animal), e ao hábito de caça e coleta.
"Com a agricultura, você perde a diversidade de alimentos", diz Neves. Além disso, o consumo de carboidratos, presentes especialmente em cereais como o milho, eleva a incidência de cáries. "E nós mostramos que esses grupos, apesar de serem ceramistas, não eram horticultores" -a presença de cerâmica costuma ser associada à agricultura na América do Sul.
O mas curioso, continua o antropólogo, é que os grupos que na realidade ergueram os sambaquis, milênios antes, tinham mais cáries que os ceramistas umbu/itararé, que os ocuparam ao redor de 1000 d.C. "O que mostra que o homem do sambaqui pode ter recorrido a fontes vegetais, por razões que a gente desconhece."

O que dinheiro não compra
Se a alta pontuação dos ceramistas catarinenses surpreendeu, o mau desempenho dos maias e de outras civilizações pré-colombianas mais adiantadas não chegou a causar admiração. "A saúde tem sido tipicamente pior em ambientes urbanos antes do século 20", diz Steckel. Não é difícil imaginar por quê: a alta densidade populacional requer mais esforço para obter comida, que já tem sua variedade limitada pela agricultura. Além disso, a facilidade de contágio de doenças era muito maior antes da introdução dos sistemas de saúde e saneamento modernos.
O que talvez cause espanto é o fato de que uma amostra de população urbana branca do século 19 de Belleville, no Canadá, teve 69,3 no índice -mesmo com um alto grau de cultura material. "Sua riqueza aparentemente não os protegeu de fatores que causam má saúde dental e doenças degenerativas de articulação", dizem os autores. O principal culpado, no caso, foi o consumo excessivo de carboidratos, em especial açúcar refinado.
O grupo de Steckel, agora, vai analisar bancos de dados de saúde óssea da Europa, para tentar responder a uma questão que tem causado polêmica entre os historiadores: quem tinha a melhor qualidade de vida em 1492, os europeus ou os índios? Steckel diz que não é possível fazer uma comparação uniforme. Mas alfineta os partidários da visão da América como um paraíso na pré-história arrasado pela conquista:
"O hemisfério Ocidental antes da chegada dos europeus era tão diverso que partes dele, em algumas épocas, eram como um Jardim do Éden ou um deserto empobrecido de saúde pelos padrões históricos antes do século 20. Por isso, é altamente enganoso falar da saúde ou da qualidade de vida dos nativos americanos como se ela fosse homogênea, ou como se as condições de 1492 fossem típicas."


Próximo Texto: lançamentos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.