São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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Ciência em Dia

De volta ao sequenciamento

Marcelo Leite
editor de Ciência

Não faz o menor sentido ser contra ou a favor do genoma. Isso seria mais ou menos como discordar do rio Amazonas, ou apoiar Fernando de Noronha. Ocorre que, como já foi dito, toda unanimidade é burra. Seria pouco inteligente, por exemplo, fazer folhetos de promoção turística do Brasil só com fotos de um desses monumentos naturais.
O fato é que está faltando gente para pôr um grão de sal no caldo insosso em que a pesquisa biológica -e, por tabela, o jornalismo científico- vai se transformando: gene, genoma, DNA, gene, genoma, DNA, gene, genoma, DNA.
Ninguém aguenta mais tanta biologia molecular e máquinas enfadonhas de sequenciamento, cuspindo sem parar fieiras intermináveis de letras, ainda por cima um alfabeto com apenas quatro delas: ATCGGATTACAGCTAATCGGAT. Muitos já começam a se perguntar qual o sentido, afinal, dessa algaravia.
Fora algumas vozes desafinadas de jornalistas, é preciso aguçar a audição para entreouvir, nos corredores dos laboratórios e do poder científico, as melodias realmente interessantes que já se insinuam entre os bumbos da genômica. Algumas notas discretas foram emitidas, há pouco menos de duas semanas, pelos luminares que escolhem os novos Nobel.
À primeira vista, os prêmios de medicina e de química foram mais uma consagração da biologia molecular. O primeiro saiu para estudiosos de genes do verme-modelo C. elegans, entre eles o lendário Sydney Brenner (figura-chave na elucidação do código que traduz DNA em proteínas) e John Sulston, ex-chefão do Projeto Genoma Humano no Reino Unido. Já o de química foi para avanços na identificação e na visualização de moléculas de proteínas.
Chama a atenção, porém, que Brenner e Sulston tenham recebido a láurea por seus trabalhos não com DNA, mas com um verme de contadas 959 células, por ajudar a desvendar o intricado processo de desenvolvimento que leva a essa arquitetura exata -um prêmio para o tipo clássico de biologia, laboriosa, que consome meses e meses sobre um microscópio. De outro lado, o galardão de química ficou com os inventores de ferramentas para estudar proteínas, os verdadeiros atores do drama molecular da vida.
É verdade que a Fundação Nobel ainda fala no DNA como o diretor de cena a comandar a ação das proteínas, mas talvez não seja pretensioso supor que foi um lapso -e que o sinal emitido por essas premiações aponta o verdadeiro futuro da pesquisa biológica e médica muito além dos genomas e de seu sequenciamento (uma simples soletração).
Ou será que não? Tal é o risco de adotar a atitude crítica diante de um consenso: perder de vista que ele pode até ser obtuso, mas nem sempre se apóia no vazio. Um recente artigo de revisão na revista "Cell" (4 de outubro, vol. 111, págs. 13-16) defende abertamente a proliferação de sequenciamentos sob o título "Sequencie primeiro, faça perguntas depois".
O argumento do texto de Arend Sidow, da Universidade Stanford, é que a mera comparação -em geral feita com a ajuda de computadores- das sequências de diversas espécies, do C. elegans ao homem e ao camundongo, tem revelado informações importantes sobre o papel de genes no desenvolvimento e no funcionamento de células, tecidos e órgãos.
Um exemplo é o da comparação do gene FOXP2 no homem e no chimpanzé, que revelou duas mutações muito recentes possivelmente relacionadas com a emergência da linguagem articulada. Sem a sequência do Projeto Genoma Humano, talvez nunca viessem à tona.
Noves fora, a conclusão é a mesma lá de cima: toda unanimidade é burra -seja ela contra ou a favor.


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