|
Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA
Para Ulrich Beck, da Universidade de Munique, ciência é causa dos principais problemas da sociedade industrial
Tecnologia é matriz do risco, diz sociólogo
ANTOINE REVERCHON
DO "LE MONDE"
Em 1986, o sociólogo alemão Ulrich Beck, da Universidade de
Munique, publicou seu já clássico
"A Sociedade de Risco", que recalculava a extensão do domínio
da incerteza aberto pela tecnologia -o qual, desde então, só fez
crescer, como se tornou evidente
depois de 11 de setembro, mas
também de Tchernobil, da vaca
louca etc. Esse alargamento, para
o sociólogo, é contemporâneo da
mundialização da economia ocidental: "A ciência e a tecnologia
são a causa dos principais problemas da sociedade industrial".
Pergunta - Como evoluiu a natureza dos riscos nesses 30 anos?
Beck - No livro "A Sociedade de
Risco", eu desenvolvi uma argumentação segundo a qual a ciência e a tecnologia são hoje a causa
dos principais problemas da sociedade industrial. A produção e a
distribuição dos "bens", das riquezas, se baseiam num princípio
regulador de escassez. O problema vem do fato de que as instituições da sociedade industrial não
foram pensadas para tratar da
produção e da distribuição dos
"males", isto é, dos riscos e acasos
ligados à produção industrial.
Minha tese principal é que esses
riscos e acasos, que eram consequências latentes e não pesquisadas da industrialização em seu
surgimento, começaram a sabotar -ao se globalizar, a partir do
início dos anos 70- as instituições do Estado-Nação moderno.
Em resumo, em certo momento
do passado recente, modificou-se
a percepção da ordem social: ela
não se basearia mais no intercâmbio apenas de bens, mas sim de
bens e de "males". Essa mutação
da percepção conduziu a uma crise das instituições e do funcionamento das sociedades ocidentais.
As posições tradicionais da luta
de classes se tornam irrisórias
diante das ameaças à saúde e à segurança. Diante da catástrofe nuclear ou de um desastre genético,
de um terremoto financeiro ou,
para ser atual, de ameaças terroristas globais, a luta de classes deixa de ser um conceito universal.
Pergunta - Os especialistas e
cientistas estão hoje em condições
de identificar causas e probabilidades desses riscos? Os administradores de riscos podem ajudar a reduzir consequências negativas?
Beck - Não! O que torna a produção e a distribuição dos "males"
tão determinantes no mundo
contemporâneo é a impossibilidade de escapar de suas consequências. Os sistemas fechados de
explicação que a ciência oferece,
na forma da especialização, ou a
política, na do direito, ou os meios
de comunicação, na de "pânico
moral", não são mais opções válidas, na medida em que estamos
todos retidos na malha mundial
de riscos tecnológicos.
Pode parecer paradoxal, mas é
precisamente o progresso da
ciência que mina o papel dos especialistas. A ciência e suas tecnologias de visualização dos "sinais
tênues" transformaram de modo
fundamental o princípio "não vejo o problema, portanto não há
problema", que por muito tempo
focalizou a atenção para os aspectos quantificáveis e visíveis dos
riscos industriais. "Deixe isso
com os especialistas" é um slogan
tão pouco aceitável quanto "Confie em mim, eu sou médico".
A invisibilidade não é mais uma
desculpa para sempre adiar a decisão e a ação, na medida em que
o poder de causar dano da produção industrial tem consequências
crescentes para cada um de nós.
Esse poder é engendrado pelo caráter indeterminado dos riscos, o
qual já tornou quase caducas as
políticas de segurança do complexo financeiro-securitário sobre
sobre o qual repousa o capitalismo contemporâneo.
Pergunta - No que essas mutações modificam o equilíbrio dos poderes, da política e da democracia?
Beck - A sociedade de risco tem,
de fato, um imenso impacto político. Pode-se até dizer que os riscos produzem uma situação quase revolucionária: a ordem social
é invertida na medida em que o
risco entra em contradição com o
conceito de cidadania limitada à
nação. A cidadania foi concebida
no Ocidente em termos de riscos
"nacionais", quer dizer, que dizem respeito a todas as pessoas
que habitam um dado território.
A globalização dos riscos ilumina a imensa dificuldade que o Estado-Nação tem de prever, organizar e controlar o risco num
mundo de redes mundiais interativas e de fenômenos híbridos, sobretudo quando ninguém se responsabiliza pelos resultados.
A crise da vaca louca é um lembrete explosivo disso. Os tomadores de decisão política afirmam
que não são responsáveis: no máximo, eles "regulam o desenvolvimento". Os especialistas científicos dizem que criam novas oportunidades tecnológicas, mas não
decidem sobre a maneira como
são utilizadas. Os empresários explicam que estão apenas atendendo a demanda do consumidor. É
o que eu chamo de irresponsabilidade organizada. A sociedade virou um laboratório onde ninguém se responsabiliza pelo resultado das experiências.
Pergunta - Pode-se imaginar uma
nova regulamentação dos riscos?
Beck - As questões seguintes são
cruciais para regular os conflitos
ligados à gestão dos riscos: quem
deve provar o quê? A quem cabe o
ônus da prova? O que pode ser
considerado prova em condições
de incerteza? Quais são as normas
de responsabilidade em vigor?
Quem é moralmente responsável?
E, finalmente, quem paga a conta?
Se uma política de gestão de riscos responder a essas interrogações, ela dará um caráter concreto
à idéia de evolução social. Porque
mudar as políticas de risco implica mudar as relações de poder que
atravessam hoje em dia a regulamentação dos riscos.
Precisamos de uma cultura da
incerteza que seja claramente distinta das culturas do risco marginal, de um lado, e da segurança
absoluta, do outro. Ela difere profundamente da "cultura do não-risco", que consiste em barrar a
inovação com dispositivos de segurança desde a origem.
Próximo Texto: Panorâmica - Astrobiologia: Estudo contesta vida em rocha marciana Índice
|