São Paulo, terça-feira, 20 de novembro de 2001

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ENTREVISTA

Para Ulrich Beck, da Universidade de Munique, ciência é causa dos principais problemas da sociedade industrial

Tecnologia é matriz do risco, diz sociólogo

ANTOINE REVERCHON
DO "LE MONDE"

Em 1986, o sociólogo alemão Ulrich Beck, da Universidade de Munique, publicou seu já clássico "A Sociedade de Risco", que recalculava a extensão do domínio da incerteza aberto pela tecnologia -o qual, desde então, só fez crescer, como se tornou evidente depois de 11 de setembro, mas também de Tchernobil, da vaca louca etc. Esse alargamento, para o sociólogo, é contemporâneo da mundialização da economia ocidental: "A ciência e a tecnologia são a causa dos principais problemas da sociedade industrial".

Pergunta - Como evoluiu a natureza dos riscos nesses 30 anos?
Beck -
No livro "A Sociedade de Risco", eu desenvolvi uma argumentação segundo a qual a ciência e a tecnologia são hoje a causa dos principais problemas da sociedade industrial. A produção e a distribuição dos "bens", das riquezas, se baseiam num princípio regulador de escassez. O problema vem do fato de que as instituições da sociedade industrial não foram pensadas para tratar da produção e da distribuição dos "males", isto é, dos riscos e acasos ligados à produção industrial.
Minha tese principal é que esses riscos e acasos, que eram consequências latentes e não pesquisadas da industrialização em seu surgimento, começaram a sabotar -ao se globalizar, a partir do início dos anos 70- as instituições do Estado-Nação moderno. Em resumo, em certo momento do passado recente, modificou-se a percepção da ordem social: ela não se basearia mais no intercâmbio apenas de bens, mas sim de bens e de "males". Essa mutação da percepção conduziu a uma crise das instituições e do funcionamento das sociedades ocidentais.
As posições tradicionais da luta de classes se tornam irrisórias diante das ameaças à saúde e à segurança. Diante da catástrofe nuclear ou de um desastre genético, de um terremoto financeiro ou, para ser atual, de ameaças terroristas globais, a luta de classes deixa de ser um conceito universal.

Pergunta - Os especialistas e cientistas estão hoje em condições de identificar causas e probabilidades desses riscos? Os administradores de riscos podem ajudar a reduzir consequências negativas?
Beck -
Não! O que torna a produção e a distribuição dos "males" tão determinantes no mundo contemporâneo é a impossibilidade de escapar de suas consequências. Os sistemas fechados de explicação que a ciência oferece, na forma da especialização, ou a política, na do direito, ou os meios de comunicação, na de "pânico moral", não são mais opções válidas, na medida em que estamos todos retidos na malha mundial de riscos tecnológicos.
Pode parecer paradoxal, mas é precisamente o progresso da ciência que mina o papel dos especialistas. A ciência e suas tecnologias de visualização dos "sinais tênues" transformaram de modo fundamental o princípio "não vejo o problema, portanto não há problema", que por muito tempo focalizou a atenção para os aspectos quantificáveis e visíveis dos riscos industriais. "Deixe isso com os especialistas" é um slogan tão pouco aceitável quanto "Confie em mim, eu sou médico".
A invisibilidade não é mais uma desculpa para sempre adiar a decisão e a ação, na medida em que o poder de causar dano da produção industrial tem consequências crescentes para cada um de nós. Esse poder é engendrado pelo caráter indeterminado dos riscos, o qual já tornou quase caducas as políticas de segurança do complexo financeiro-securitário sobre sobre o qual repousa o capitalismo contemporâneo.

Pergunta - No que essas mutações modificam o equilíbrio dos poderes, da política e da democracia?
Beck -
A sociedade de risco tem, de fato, um imenso impacto político. Pode-se até dizer que os riscos produzem uma situação quase revolucionária: a ordem social é invertida na medida em que o risco entra em contradição com o conceito de cidadania limitada à nação. A cidadania foi concebida no Ocidente em termos de riscos "nacionais", quer dizer, que dizem respeito a todas as pessoas que habitam um dado território.
A globalização dos riscos ilumina a imensa dificuldade que o Estado-Nação tem de prever, organizar e controlar o risco num mundo de redes mundiais interativas e de fenômenos híbridos, sobretudo quando ninguém se responsabiliza pelos resultados.
A crise da vaca louca é um lembrete explosivo disso. Os tomadores de decisão política afirmam que não são responsáveis: no máximo, eles "regulam o desenvolvimento". Os especialistas científicos dizem que criam novas oportunidades tecnológicas, mas não decidem sobre a maneira como são utilizadas. Os empresários explicam que estão apenas atendendo a demanda do consumidor. É o que eu chamo de irresponsabilidade organizada. A sociedade virou um laboratório onde ninguém se responsabiliza pelo resultado das experiências.

Pergunta - Pode-se imaginar uma nova regulamentação dos riscos?
Beck -
As questões seguintes são cruciais para regular os conflitos ligados à gestão dos riscos: quem deve provar o quê? A quem cabe o ônus da prova? O que pode ser considerado prova em condições de incerteza? Quais são as normas de responsabilidade em vigor? Quem é moralmente responsável? E, finalmente, quem paga a conta?
Se uma política de gestão de riscos responder a essas interrogações, ela dará um caráter concreto à idéia de evolução social. Porque mudar as políticas de risco implica mudar as relações de poder que atravessam hoje em dia a regulamentação dos riscos.
Precisamos de uma cultura da incerteza que seja claramente distinta das culturas do risco marginal, de um lado, e da segurança absoluta, do outro. Ela difere profundamente da "cultura do não-risco", que consiste em barrar a inovação com dispositivos de segurança desde a origem.



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