São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 2009

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+Marcelo Leite

Morte na praia


O gás carbônico, além de aquecer a Terra, modifica a química dos mares


E sta coluna vai para o prelo antes de encerrar-se a conferência do clima em Copenhague. De seguro só se pode dizer que, termine em acordo ou desacordo, terá sido insuficiente para equacionar a maior ameaça a rondar a humanidade. Sendo assim, em lugar de falar de homens e de política, falemos de conchas e carapaças, menos duras de roer.
Passei as primeiras duas décadas de vida sem comer moluscos e crustáceos, coisa de que hoje me arrependo. Mas gostava de catar conchas e correr atrás de siris na areia preta da praia de Itaguá, em Ubatuba (SP). Sou velho o bastante para ter procurado e encontrado, entre as pedras do canto da praia, caramujos daqueles vermelhos, do tamanho de um punho de criança.
Desde então, catar conchas virou sinônimo de paz de espírito. Há poucas coisas tão eficazes para esvaziar a mente quanto caminhar na areia úmida. Olhos pregados no chão, a avaliar cada volume semissoterrado, na esperança de que se revele como forma única e desconhecida, mesmo desprovida da carne que um dia secretou a casca barroca.
Nada que se compare com ser biólogo e malacólogo (especialista em moluscos), mas dá para o gasto. Os caramujos se tornaram mais raros, é verdade, só que o mundo não se acabará por falta de conchas. Os sambaquis dão testemunho abundante disso.
Por outro lado, o mundo dos homens pode pôr o dos moluscos em perigo. Se não em número, pelo menos em variedade (biodiversidade). E os crustáceos sofrerão junto.
Essas duas formas de vida marinha e várias outras -como os microscópicos foraminíferos- dependem do carbonato de cálcio (CaCO3) para construir as belas conchas e carapaças. É o seu calcanhar-de-aquiles. Se diminuir a quantidade de CaCO3 na água do mar, ficarão em maus lençóis.
Durante a conferência de Copenhague, o secretariado da Convenção da Biodiversidade -outro tratado assinado no Rio em 1992, meio esquecido- lançou uma relatório preocupante para moluscos e crustáceos: "Síntese Científica dos Impactos da Acidificação do Oceano na Biodiversidade Marinha". Pode ser lido, em inglês, no endereço www.cbd.int/doc/publica tions/cbd-ts-46-en.pdf.
O estudo dá conta de que, ao queimar combustíveis fósseis e lançar bilhões de toneladas adicionais de CO2 no ar, não estamos só aumentando sua concentração na atmosfera e com isso aprisionando mais calor junto à superfície do planeta (aquecimento global). Alteramos também a química dos mares, que absorvem cerca de um quarto de todo o CO2 emitido por atividades humanas.
É o que se chama de sorvedouro (ou sumidouro) de carbono. Conforme aumenta a concentração de CO2 na água do mar, porém, ela se torna mais ácida. Diminui, em consequência, a disponibilidade de carbonato de cálcio para moluscos e crustáceos construírem suas casas portáteis.
Estima-se que a acidez dos oceanos já se tenha elevado em 30% em um século e meio. Os níveis de carbonato de cálcio no mar são os mais baixos dos últimos 800 mil anos. No ritmo atual de emissão de CO2, poderá saltar outros 150% até o final do século 21.
Se isso de fato ocorrer, será uma velocidade cem vezes maior do que aquelas que os pesquisadores do ramo avaliam ter prevalecido nos últimos 20 milhões de anos. Moluscos e crustáceos, entre outras criaturas que dependem da molécula, teriam grande dificuldade de adaptar-se a mudança tão brusca. Muitas espécies podem simplesmente desaparecer da Terra.
Morreremos todos, mais um pouco, na praia.


MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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