São Paulo, domingo, 21 de fevereiro de 2010

Texto Anterior | Índice

+Marcelo Leite

Geleiras em perigo

Dados parecem indicar que a maioria está em retração P ermita o leitor que esta coluna volte à controvérsia sobre o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática), em que teve papel importante o erro sobre as geleiras do Himalaia. No seu quarto relatório de avaliação (AR4, de 2007), o painel dizia que elas corriam o risco de desaparecer até 2035, uma bobagem que escapou à legião de autores que revisaram o documento.
E o restante das geleiras existentes no mundo, em que situação se encontram? A cincada do Himalaia pode levar à conclusão de que também é incerta, se não duvidosa, a afirmação corrente de que elas se encontram em recuo. Incerta ela é -por definição. A incerteza decorre da complexidade dos fenômenos do clima. Algumas geleiras encolhem e outras aumentam, sem que ninguém saiba bem por quê. Para complicar, o estudo sistemático é recente e cheio de lacunas. Seria irresponsável, no entanto, ignorar os dados existentes, ou impugná-los todos em nome de uma exigência de certeza impossível de obter. E as informações disponíveis parecem indicar que a maioria das geleiras está em retração.
Uma das fontes mais respeitadas no ramo é o Serviço Mundial de Monitoramento de Geleiras (WGMS), com sede na Suíça e mantido desde 1986 por uma penca de organizações científicas e multilaterais. A entidade recolhe dados padronizados sobre uma centena de geleiras do mundo todo, mas a maioria se localiza na Escandinávia e nos Alpes. O último dado disponível -"tentativo", ressalva o WGMS- se refere ao período 2007/2008: saldo negativo de 0,5 m na espessura. Com base nas estatísticas de longo prazo colhidas em 30 geleiras em nove cadeias montanhosas (incluindo uma nos Andes e duas no Alasca), estima-se uma perda acumulada de 12 m desde 1980.
Há geleiras engordando, em vez de emagrecer? Sim, como Blomstolskar, na Noruega, recordista com 1,33 m em 2007/2008. Mas só 32% delas apresentam saldo positivo na balança. A campeã de perda de peso -Sarennes, na França- encolheu 2,34 m.
Pior destino teve Chacaltaya, na Bolívia. Destino popular entre mochileiros do Brasil que se aventuravam no Trem da Morte (Corumbá-Santa Cruz de La Sierra), a estação de esqui tida como mais alta do mundo (acima de 5.400 m de altitude) viu sua geleira perder 1,55 m em 2007/2008 e desaparecer em 2009.
Assim como o Himalaia, geleiras nos Andes tropicais são importantes fontes de água para populações pobres. Na conferência "Gelo e Mudança do Clima: Uma Visão do Sul", realizada no começo deste mês em Valdivia (Chile), o pesquisador francês Bernard Francou documentou perdas de 30% a 50% na área de geleiras andinas nas últimas três décadas.
Culpa da mudança do clima e do aquecimento global antropogênico (causado pelo homem)? Difícil dizer. As três décadas de encolhimento coincidem com a Oscilação Decadal do Pacífico (PDO, na abreviação em inglês). Trata-se de um fenômeno de resfriamento anômalo das águas na altura da Califórnia com período mais longo (20-30 anos) e menos conhecido que o El Niño (periodicidade aproximada de 5 anos).
Como o El Niño, o PDO altera os padrões de precipitação, portanto a queda de neve que alimenta as geleiras. Outra oscilação, a Antártica, também influencia a região.
Aquilatar o peso de cada fator é trabalho para muitos anos de pesquisa, que no entanto perderão interesse, prioridade e verbas se vingar a impressão -igualmente sem fundamento- de que não há geleiras em perigo.

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).
Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


Texto Anterior: Um pequeno passo para trás
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.