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+Marcelo Leite
Geleiras em perigo
Dados parecem indicar que a maioria está em retração
P
ermita o leitor que esta coluna
volte à controvérsia sobre o
IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática),
em que teve papel importante o erro
sobre as geleiras do Himalaia. No seu
quarto relatório de avaliação (AR4, de
2007), o painel dizia que elas corriam
o risco de desaparecer até 2035, uma
bobagem que escapou à legião de autores que revisaram o documento.
E o restante das geleiras existentes
no mundo, em que situação se encontram? A cincada do Himalaia pode levar à conclusão de que também é incerta, se não duvidosa, a afirmação
corrente de que elas se encontram em
recuo. Incerta ela é -por definição.
A incerteza decorre da complexidade dos fenômenos do clima. Algumas
geleiras encolhem e outras aumentam, sem que ninguém saiba bem por
quê. Para complicar, o estudo sistemático é recente e cheio de lacunas.
Seria irresponsável, no entanto, ignorar os dados existentes, ou impugná-los todos em nome de uma exigência de certeza impossível de obter. E
as informações disponíveis parecem
indicar que a maioria das geleiras está
em retração.
Uma das fontes mais respeitadas no
ramo é o Serviço Mundial de Monitoramento de Geleiras (WGMS), com
sede na Suíça e mantido desde 1986
por uma penca de organizações científicas e multilaterais. A entidade recolhe dados padronizados sobre uma
centena de geleiras do mundo todo,
mas a maioria se localiza na Escandinávia e nos Alpes.
O último dado disponível -"tentativo", ressalva o WGMS- se refere ao
período 2007/2008: saldo negativo de
0,5 m na espessura. Com base nas estatísticas de longo prazo colhidas em
30 geleiras em nove cadeias montanhosas (incluindo uma nos Andes e
duas no Alasca), estima-se uma perda
acumulada de 12 m desde 1980.
Há geleiras engordando, em vez de
emagrecer? Sim, como Blomstolskar,
na Noruega, recordista com 1,33 m em
2007/2008. Mas só 32% delas apresentam saldo positivo na balança. A
campeã de perda de peso -Sarennes,
na França- encolheu 2,34 m.
Pior destino teve Chacaltaya, na Bolívia. Destino popular entre mochileiros do Brasil que se aventuravam no
Trem da Morte (Corumbá-Santa Cruz
de La Sierra), a estação de esqui tida
como mais alta do mundo (acima de
5.400 m de altitude) viu sua geleira
perder 1,55 m em 2007/2008 e desaparecer em 2009.
Assim como o Himalaia, geleiras
nos Andes tropicais são importantes
fontes de água para populações pobres. Na conferência "Gelo e Mudança
do Clima: Uma Visão do Sul", realizada no começo deste mês em Valdivia
(Chile), o pesquisador francês Bernard Francou documentou perdas de
30% a 50% na área de geleiras andinas
nas últimas três décadas.
Culpa da mudança do clima e do
aquecimento global antropogênico
(causado pelo homem)? Difícil dizer.
As três décadas de encolhimento
coincidem com a Oscilação Decadal
do Pacífico (PDO, na abreviação em
inglês). Trata-se de um fenômeno de
resfriamento anômalo das águas na
altura da Califórnia com período mais
longo (20-30 anos) e menos conhecido que o El Niño (periodicidade aproximada de 5 anos).
Como o El Niño, o PDO altera os padrões de precipitação, portanto a queda de neve que alimenta as geleiras.
Outra oscilação, a Antártica, também
influencia a região.
Aquilatar o peso de cada fator é trabalho para muitos anos de pesquisa,
que no entanto perderão interesse,
prioridade e verbas se vingar a impressão -igualmente sem fundamento- de que não há geleiras em perigo.
MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica,
Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora
da Unicamp, 2008).
Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
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