São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

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+(c)iência

Sistematas criam melhor álbum de família dos anfíbios, desfazendo equívocos sobre história do grupo

Família de duas vidas

AMNH/Divulgação
A perereca Phyllomedusa hypocondrialis, típica de florestas tropicais, uma das 522 espécies analisadas durante o estudo


REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Se a categoria de primo pobre fosse aplicada aos grupos de vertebrados, não resta muita dúvida de que os anfíbios ganharam de lavada. Não por falta de variedade ou importância, mas porque os pobres sapos, rãs, pererecas, salamandras e cobras-cegas costumam ser considerados uma mera relíquia evolutiva, do tempo em que os animais davam seus primeiros passos incertos sobre a terra firme. De quebra, ainda são uma das vítimas mais frágeis da atual onda de extinções globais.
Um trabalho monumental, no entanto, pode começar a mudar essa escrita, ao menos do ponto de vista do conhecimento básico sobre os bichos. Dezenove pesquisadores de dez países resolveram jogar fora a poeira de décadas de dados defasados e refazer toda a árvore genealógica das 6.000 espécies do grupo. É o maior esforço desse tipo já feito em relação a um grupo de vertebrados, traçando um quadro impressionante de como a evolução acontece. Espera-se que o trabalho, um artigo científico de 370 páginas, dê pano para manga durante décadas, ajudando inclusive a enfrentar os problemas de conservação que assombram os anfíbios.
O trabalho está na última edição da revista científica "American Museum of Natural History Bulletin", do Museu Americano de História Natural. "Não é que a gente tenha acordado um belo dia e decidido que ia encarar o grupo inteiro dos anfíbios", conta Darrel Frost, coordenador do projeto. "A coisa toda simplesmente cresceu. Começou com um simples catálogo on-line das espécies, mas o meu trabalho nisso me convenceu de que muito do nosso entendimento sobre o parentesco entre os anfíbios estava baseado em conhecimento antiquado."

Ossinho errado
"Antigamente, um autor pegava um ossinho de um animal, comparava com um ossinho de outro e traçava uma relação de parentesco a partir daí", emenda o brasileiro Celio Haddad, da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Rio Claro, que é co-autor do trabalho. "Acontece que muitas vezes ele nem estava comparando ossos que eram equivalentes, e isso estragava a análise." A tecnologia dos anos 2000 é que veio em socorro dos pesquisadores, mais especificamente a revolução genômica.
"A importância para a biologia evolutiva é enorme. Hoje, numa semana, nós conseguimos juntar dados moleculares suficientes para responder perguntas que exigiriam de nós anos de estudos anatômicos ultraprecisos", diz Frost. Para traçar a mega-árvore genealógica, eles juntaram trechos de DNA de 522 espécies ao bom e velho método comparativo anatômico. Essa montanha de dados foi analisada pelos supercomputadores do museu americano durante três meses.
Ninguém se surpreendeu muito ao descobrir que a visão atual sobre o parentesco entre os anfíbios era uma bagunça completa. "No caso de um dos grupos, todo mundo sabia que ele era polifilético (ou seja, continha membros que na verdade não compartilhavam um ancestral comum, ao contrário do que recomendam as regras de classificação), mas ninguém tinha coragem de mexer nesse vespeiro", diz Haddad.
O estudo confirmou que o primeiro grupo a se tornar "independente" foi o das cobras-cegas, enquanto anuros (sapos, rãs e pererecas) e caudados (salamandras e afins) se separaram mais tarde. Mas o mais intrigante é a quantidade de características que parecem ser "avançadas", mas, na verdade, teriam surgido cedo na evolução anfíbia.
Dois exemplos têm a ver com reprodução: desde o princípio, parece que alguns sapos aprenderam o truque de passar direto do ovo para a forma de sapo (sem virar girino antes); e muitos grupos primitivos também cuidam da cria, coisa considerada típica de vertebrados mais "avançados". "Há sapos que carregam os filhotes no dorso ou mesmo na bolsa vocal dos machos", conta Haddad.
Para Frost, todos esses dados são uma verdadeira lição de como a evolução acontece. "Esses estudos nos permitem entender que características complexas podem ser bloqueadas ou revertidas por mudanças genéticas relativamente simples. Por exemplo, há uma única espécie de sapo no mundo com dentes no maxilar inferior. Achava-se que ele era muito primitivo, mas na verdade ele está lá no alto da árvore. Ou seja, a maquinaria genética necessária para desenvolver esses dentes não foi apagada. Ela simplesmente estava dormente -e foi reativada." No mundo anfíbio, assim como no humano, o potencial oculto pode estar onde menos se espera.


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