São Paulo, domingo, 21 de junho de 2009

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+ Marcelo Leite

Em Brasília, 19 horas


Aumentam significativamente os casos de infarto nos primeiros dias do horário de verão


Há dez dias estive em Recife. No voo de volta, o Airbus-310 despegou-se da pista às 17h30. O céu já estava escuro, quase noite, como que agourando um percurso em que não faltariam avisos de apertar os cintos por causa de turbulências.
Não fosse a relativa proximidade do desastre aéreo ao norte dali, a escuridão não incomodaria. Quem sobreviveu ao inverno em Berlim (latitude 52 Norte), muito mais distante da linha do Equador (0) que São Paulo (23 Sul), não se assusta com o anoitecer precoce.
Recife fica na longitude 35 Oeste. Geograficamente isso põe a cidade dois fusos horários à esquerda do meridiano de Greenwich (0). Ou seja, com duas horas a menos que Londres (UTC -2, na nomenclatura).
Pela lei nacional, porém, aquele extremo oriental do Nordeste e do Brasil está no fuso UTC -3. O sol se pôs naquela sexta-feira às 17h11, mas essa era a hora de Brasília, não de Recife. "Pela hora de Deus", como dizia o padre de Ubatuba que se recusava a adiantar o relógio da igreja no horário de verão, eram já 18h11.
Menino ainda, achava o padre doido. Luz do dia até as oito ou nove da noite era o máximo. Dava para brincar até tarde na rua. Hoje, com menos flexibilidade para ajustar os horários de sono, é tentador dar-lhe razão.
Leio agora que a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou a unificação de todos os fusos horários do Brasil. Parece que é para não complicar a vida das redes de televisão. Assim elas poderiam transmitir suas novelas de forma sincronizada para todo o território.
Nada mudaria no Nordeste. Pense, porém, na cidade de Cruzeiro do Sul (73 Oeste), no extremo ocidental do Acre. Até um ano atrás, e isso desde 1913, estava onde deveria estar, no fuso UTC -5 (duas horas a menos que Brasília). Mas a lei nº 11.662/2008 arrastou-a para o fuso UTC -4.
Vingando o que os senadores ora ensaiam, o pessoal de Cruzeiro do Sul avançaria mais uma hora, para o fuso UTC -3. Se a primeira mudança equivaleu a um horário de verão permanente, a novidade significaria uma dose dupla dele. O pôr do sol de anteontem, ali, em lugar de 18h43, teria acontecido às 19h43.
Quem acha que há razão para comemorar deve pensar duas vezes. O nascer do sol foi às 7h01 na última sexta-feira. Imagine se os relógios estivessem marcando 8h01.
Seria uma crueldade com as crianças que vão à escola de manhã. Não basta levantar cedo, num horário em geral incompatível com a fisiologia do aprendizado. Para piorar, ainda teriam de sair de casa e começar as aulas no escuro.
Existem indicações de que essa manipulação artificial do ritmo circadiano do organismo humano -ciclo que dura cerca de um dia, como diz o nome, regulado pela luz- pode prejudicar a saúde. Em especial quando os relógios são adiantados, no início do horário de verão, e as pessoas perdem uma hora de sono.
A adaptação não se dá sem estresse. Estudo de 2008 do Instituto Karolinska examinou registros de duas décadas na Suécia. Publicado no famoso periódico "New England Journal of Medicine", o artigo de Imre Janszky e Rickard Ljung concluiu que aumentam significativamente os casos de infarto nos primeiros dias do horário de verão.
Brasília é um lugar estranho. Ali se acredita que, se a lei disser, as suas 19h valem para todo o país. Como se o Brasil inteiro falasse numa única voz -a voz do dono.


MARCELO LEITE é autor de "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br

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