São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

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+Marcelo Leite

Natal sem bacalhau


Peixe tradicional pode vir a faltar já nos próximos 20 anos


Um dos quadros mais bonitos que já tive oportunidade de contemplar é o óleo "Fog Warning" (alerta de neblina, 1885), do americano Winslow Homer (1836-1910). Sombria, a obra mostra um pescador da Nova Inglaterra solitário no bote que monta um vagalhão, os remos congelados no ar. Um retrato acabado do homem que confronta os elementos. Ele olha sobre o ombro esquerdo, tenso, na direção da sirene que soa na nave-mãe, mal e mal visível no horizonte que se esfumaça no banco de névoa em aproximação. Se não voltar ao navio em tempo, pode perder-se para sempre. Na popa do bote há um peixe quase do tamanho do remador. É um halibute (Hippoglossus hippoglossus), espécie de linguado avantajado que pode chegar a 200 quilos. Na visita ao Museu de Artes Plásticas de Boston, convenci-me de que era um bacalhau (Gadus morhua), antes o peixe mais importante da região e pescado da mesma maneira, com linha, em botes que partiam da nave-mãe.
G. morhua é o bacalhau verdadeiro, bacalhau-do-atlântico, pescado a sério desde o tempo dos vikings. Exemplares de até cem quilos já foram capturados, mas espécimes na faixa de dez quilos são mais comuns -ou eram. Fresco, o peixe compõe a base protéica tradicional tanto do "fish chowder", prato típico da Nova Inglaterra quanto do "fish and chips", da velha Inglaterra. Salgado, alimentou várias gerações de escravos brasileiros e antilhanos, proteína barata para mover plantações de cana e engenhos de açúcar coloniais. Já foi sinônimo de comida de pobre. Depois, tornou-se o epicentro da culinária portuguesa, na encarnação que todos conhecemos. A história está contada com rara competência no livro "Cod - A biography of the fish that changed the world" (bacalhau, uma biografia do peixe que mudou o mundo), de Mark Kurlansky.
Há casas em que o bacalhau não pode faltar na mesa de Natal (como a etimologia de "halibute" remete a pescado para ser ingerido em dias santos, releve-se o engano com a identidade do hipoglosso na pintura). Pois faltará, talvez já nos próximos 20 anos. Mesmo que todos parem de comprá-lo e comê-lo hoje, em respeito a peixe tão venerável. A perspectiva, sombria como no quadro de Homer, projeta-se de um estudo dos biólogos Douglas Swain e Ghislain Chouinard, do Departamento de Pesca do Canadá, divulgado no boletim eletrônico "Science Now" (sciencenow.sciencemag.org).
Mesmo após 15 anos de proibição quase total de captura, não se vêem sinais de recuperação de populações naquela que já foi a principal área de pesca do bacalhau, nas vizinhanças de Terra Nova. Navios pesqueiros de várias bandeiras arrasaram os estoques de bacalhau ao largo da costa atlântica canadense nos anos 1990, após meio século de coleta indiscriminada. Qualquer pessoa que aprecie sua carne flocada já sentiu no bolso os efeitos dessa extinção em andamento. Os preços sobem e os bacalhaus encolhem.
Na realidade, são os bacalhaus adultos que estão morrendo. Ninguém sabe direito por quê. Swain e Chouinard suspeitam que seja culpa das focas, que estariam devorando mais bacalhau do que o recomendável. Afinal, nada as obriga a seguir regras e normas humanas. Administradores de estoques pesqueiros sempre presumiram que, uma vez suspensa a pesca em escala industrial, qualquer população marinha se recuperaria. Bacalhaus e focas parecem determinados a mostrar o quanto erramos como espécie.


MARCELO LEITE é autor dos livros "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br )
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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