|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Micro/Macro
O Carnaval da ciência
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Domingo de Carnaval, e no Brasil,
pelo menos, milhões de pessoas estão nas ruas pulando com seus blocos ou
torcendo pelas suas escolas.
Este ano marca a entrada de um novo
tema nas passarelas: a ciência. A escola
de samba Unidos da Tijuca, do Rio de Janeiro, desfilará esta noite com o enredo
"O Sonho da Criação e a Criação do Sonho: A Arte da Ciência no Tempo do Impossível", provando definitivamente que
ciência também dá samba.
O enredo, desenvolvido com o apoio
da Casa da Ciência/Centro Cultural de
Ciência e Tecnologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, explora a função do sonho e da imaginação na criatividade científica, usando como ilustração grandes avanços e descobertas na
química, biologia e física. Tem até máquina do tempo.
Genial, essa iniciativa. Combinar a
maior festa brasileira com ciência é ajudar a desmitificá-la junto a um público
que, na maioria, tem pouco interesse por
essas coisas. E o uso do sonho, do papel
da imaginação na criatividade científica,
como gancho é perfeito, pois ajuda a humanizar a ciência, a mostrar que ela também é fruto dos mesmos anseios e dúvidas que afligem a todo ser humano.
Afinal, a ciência lida com o desconhecido, com questões que vão desde o mundano e prático ao sublime e grandioso.
Trazer essa busca pelo conhecimento para a passarela é um experimento que desbrava fronteiras culturais e que mostra
grande coragem e inspiração do carnavalesco Paulo Barros e sua equipe.
Ninguém sabe ao certo o que é criatividade, ou por que alguns indivíduos são
mais criativos do que outros. É comum
dizer que criativo é aquele que consegue
ver conexões e estabelecer pontes entre
assuntos que, para a maioria, são completamente independentes.
Uma vez estabelecidas, porém, conexões antes ocultas se tornam óbvias, quase inevitáveis. A ciência é uma grande
narrativa, uma linguagem que inventamos para traduzir o mundo natural em
símbolos e conceitos que possamos
compreender. Ela humaniza a natureza.
E a arte humaniza o homem. A junção
das duas ocorre justamente na pergunta,
na vontade de criar significado, de compreender os dois mundos onde coexistimos, o mundo exterior e o mundo interior (que, na verdade, são o mesmo). As
mensagens se complementam e não podem ser separadas por completo.
Se Einstein falava de espaços curvos no
início do século 20, e Bohr e outros, da
descontinuidade inerente ao mundo atômico, Picasso e Braque falavam da decomposição da forma na pintura e na escultura, da reestruturação do espaço em
sua representação gráfica. A ciência revelando uma nova compreensão do espaço e do tempo, e a arte, uma nova forma de expressá-los.
As duas fazem parte de nossa relação
com o mundo. E ambas dependem da
criatividade humana, da fusão de conceitos distintos, do sonho imaginativo e corajoso que consegue romper padrões estabelecidos e criar o novo.
Sem dúvida, alguns acharão que misturar samba com ciência é deturpar a seriedade do processo científico, transvesti-lo em algo que não é. Eu discordo. É
justamente dessas novas roupas que a
ciência precisa, para que seja apreciada
por um número cada vez maior de pessoas. Isolar as descobertas científicas em
jornais científicos e laboratórios é equivalente a esconder todos os quadros e
poemas já escritos em um almoxarifado
sem porta.
A ciência faz parte de nossa cultura e
tem de ser vista como tal. Se o seu significado tem de ser traduzido para que seja
captado por setores maiores da população, que seja assim. Ninguém espera
aprender ciência a partir de um desfile de
carnaval. Mas se pode aprender sobre
ciência e, ainda mais importante, por
que certos indivíduos decidem dedicar
suas vidas na busca por significados e conexões por trás de nossa limitada percepção sensorial do mundo natural.
Portanto, boa sorte, Unidos da Tijuca.
Fico orgulhoso de ver a ciência na avenida, em meio a muito samba, suor e cerveja. Afinal, a dança ocorre em vários níveis: das pessoas aos elétrons, prótons,
neutrinos e às radiações as mais diversas,
algumas vindas dos confins do espaço,
outras daqui mesmo, tudo vibrando em
freqüências visíveis e invisíveis, espalhando conhecimento e sorrisos em uma
noite do verão carioca.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
Texto Anterior: + Ciência: Sabedoria espartana Próximo Texto: Ciência em Dia: Genes públicos e privados Índice
|