São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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+ Marcelo Leite

Por um Proantar civil


A pesquisa precisa deixar de ser pretexto e ocupar o centro das atividades

Termina neste mês o Ano Polar Internacional 2007-2008, um esforço mundial de pesquisa nos extremos da Terra -Ártico e Antártida- que reúne mais de 10 mil cientistas de 64 países. Entre eles o Brasil, que faz estudos na Antártida desde 1982. O país deu um salto com o Ano Polar, multiplicando por dez as verbas anuais para pesquisas na região.
A ciência antártica nacional deu também neste verão um salto menos metafórico ao penetrar no interior do continente. Um dos principais projetos brasileiros no Ano Polar foi a Expedição Deserto de Cristal, primeira missão científica autônoma no manto de gelo que cobre o continente austral. (A Folha acompanhou essa incursão pioneira, como está relatado na revista especial que circula hoje com o jornal.)
É um bom momento para mudar tudo. O Programa Antártico Brasileiro (Proantar) deveria sair da alçada da Marinha. A pesquisa precisa deixar de ser apenas pretexto e passar a ocupar o centro das atividades do país nas vizinhanças do polo Sul.
Hoje o Proantar e a estação Comandante Ferraz encontram-se sob o domínio da Secretaria da Comissão Interministerial de Recursos do Mar (Secirm), controlada pelo Comando da Marinha, formalmente submetido ao Ministério da Defesa. Outros quatro ministérios -Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente, Relações Exteriores e Minas e Energia- integram a Secirm, mas quem manda é a Marinha.
Os 27 anos do Proantar foram em certa medida bem-sucedidos. O país tem hoje uma estação ampla, ainda que na extrema periferia antártica (mais perto da América do Sul do que do polo Sul) e subutilizada para estudos. Em breve terá dois navios polares -nenhum deles quebra-gelo e com quantidade reduzida de laboratórios.
O setor de pesquisa do Proantar já tem subordinação civil. Ela se encontra hoje na alçada do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). São frequentes os conflitos entre prioridades científicas e militares, no entanto.
A investigação científica compõe a espinha dorsal do Tratado da Antártida, que rege a atividade das nações nesse território verdadeiramente internacional. Com sua entrada em vigência, em 1961, os países-membros -condição que o Brasil adquiriu em 1975- se obrigaram a realizar pesquisa substantiva na região.
A pesquisa antártica brasileira fica longe disso, amarrada como está à logística da Marinha. Trata-se de um resquício da ditadura militar, quando todos os projetos estratégicos -nuclear, aeroespacial, informático- se originavam na caserna ou eram geridos por seus quadros.
Acreditava-se na época que o continente gelado guardasse muitas riquezas minerais. Pode ser, mas hoje está claro que recursos como petróleo e gás natural, embora provavelmente lá estejam, são muito caros e difíceis de extrair de um terreno coberto por uma cama de gelo com espessura de 1.800 metros -em média.
O interesse de pesquisar na Antártida, no momento, é elucidar fenômenos meteorológicos e climáticos. Eles interessam ao planeta como um todo, na perspectiva do aquecimento global, e ao Brasil em particular, pois de lá partem nossas frentes frias.
Isso é tarefa de cientistas, não de militares. O Brasil deve seguir o exemplo de potências antárticas como Estados Unidos e Reino Unido e tornar seu programa inteiramente civil -o que não exclui recorrer à experiência da corporação militar, como faz o Instituto Antártico Chileno, se e quando ela for necessária.


MARCELO LEITE é autor da coletânea de colunas "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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