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Marcelo Gleiser
A guerra dos mundos
Marte é um planeta provavelmente desprovido de vida.
Que não seja
esse o nosso futuro
Em 1877, o astrônomo italiano
Giovanni Schiaparelli, aproveitando-se de uma maior proximidade do planeta Marte, fez observações detalhadas de sua superfície.
Dentro dos limites de seu telescópio,
Schiaparelli discerniu o que pareciam
ser linhas cruzando o planeta, como se
fossem estradas gigantescas. Chamou-as de "canali", aparentemente
sem a intenção de dar-lhes a conotação de canais escavados propositadamente. Mesmo assim, foi esse o sentido que ficou popular. Dezenas de astrônomos voltaram seus telescópios
para Marte, na tentativa de desvendar
os segredos dos misteriosos canais.
Entre eles estava o milionário americano Percival Lowell, que largou seus
negócios em Boston para construir
um observatório de porte numa montanha do Arizona.
Em 1895, Lowell publicou um livro
com suas observações. Os canais, segundo ele, estavam mesmo lá, obras
de porte gigantesco, estendendo-se
por milhares de quilômetros sobre a
superfície marciana. Se fossem menores não poderiam ser vistos com os telescópios da época. Lowell chegou a
comparar a situação com a Terra, se
observada de Marte. Nenhum traço da
presença humana seria detectado.
Talvez as enormes plantações de milho e trigo no oeste americano, que os
marcianos veriam mudar de cor nas
diferentes estações, especulou.
Segundo ele, só havia uma explicação: os marcianos, que habitavam as
regiões equatoriais do planeta, estavam morrendo de sede. Os canais,
obras que seriam impossíveis com a
tecnologia mais avançada da época,
dirigiam água das calotas polares até
plantações nos trópicos. O maior canal da Terra, o canal de Suez, aberto
em 1869, tinha "apenas" 163 km. Os
marcianos existiam, e eram muito
mais avançados do que nós.
O livro de Lowell causou sensação.
Dentre os entusiasmados com a possibilidade de vida em Marte estava o escritor inglês H. G. Wells. Em 1895,
Wells havia publicado seu primeiro
sucesso de ficção científica, "A Máquina do Tempo". Inspirado por Lowell e
pela ciência da época, em 1898 Wells
publica "A Guerra dos Mundos".
O livro conta a história de uma invasão marciana. Não havia qualquer intenção de comunicação por parte deles. Eles vieram para dominar a Terra
e para beber o sangue dos terrestres.
Usando idéias da teoria da evolução,
Wells propôs que os marcianos fossem essencialmente o nosso futuro:
seres muito mais inteligentes, seus
corpos sendo invólucros para seus
enormes cérebros. Os únicos membros eram tentáculos que faziam o papel dos dedos das nossas mãos. Eles
haviam evoluído a tal ponto que não
comiam (apenas injetavam sangue diretamente em suas veias), não dormiam e sua reprodução era assexuada.
Segundo Wells, eles haviam se libertado da prisão sensorial em que vivemos, vítimas que somos de nossos desejos e das nossas sensações.
O livro faz o que é comum em ficção
científica: extrapolar a ciência da época para explorar também conseqüências éticas e morais. Tanto assim que,
as duas adaptações para cinema, a de
1953, dirigida por Byron Haskin e a de
2005, dirigida por Steven Spielberg,
adaptam a temática do livro para a sua
realidade social. A de 1953 ecoa a era
atômica e a Guerra Fria. Não existe
qualquer motivo senão a aniquilação
dos humanos. Na de 2005, o foco é a
desintegração da família e o medo da
ameaça terrorista.
Os ETs não são mais de Marte, pois
sabemos que de lá não poderiam vir.
Os canais de Lowell eram miragens.
Marte é um planeta que, ao menos hoje, é provavelmente desprovido de vida. Esperemos que não seja esse o
nosso futuro. A data de hoje é propícia
para refletirmos sobre isso.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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