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OPINIÃO
Brincando de Deus
EDUARDO CRUZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
A EXPRESSÃO "brincar
de Deus" tornou-se popular desde que cientistas e tecnólogos começaram a
manipular genes nos anos
1970. De fato, se Deus tinha poder para criar e conduzir a vida
biológica e humana, os seres
humanos começavam a compartilhá-lo. Nesse sentido, o
avanço tecnológico de Craig
Venter & cia., não apresenta
nenhum desafio novo para a reflexão teológica.
De modo negativo, associam-se desenvolvimentos "divinos"
aos amargos frutos do conhecimento do bem e do mal, e de
modo positivo, ao exercício da
"imagem e semelhança de
Deus" descrita pela tradição
monoteísta ocidental.
Muito se fala, na teologia
contemporânea, nos seres humanos como "cocriadores" do
real. Isto quer dizer que esta
criação é subordinada a princípios e criações anteriores,
transcendentes. De certa forma, isto é destacado pelos próprios cientistas, quando, ao comentarem o feito de Venter &
Cia, dizem que não se trata de
criar vida sintética, mas de mimetizá-la (David Baltimore).
Assim sendo, tal notícia de
uma bactéria sintética traz à
baila problemas velhos e novos.
Velhos porque, desde que se
sintetizou a ureia no século 19,
percebe-se a capacidade humana de mimetizar os processos
vitais, com as consequentes visões utópicas e catastrofistas.
Novos, porque parece dar
plena razão à "hybris" de pesquisadores reducionistas como
Craig Venter, para os quais não
há obstáculos para a sintetização da vida de baixo (átomos e
moléculas) para cima (organismos), a não ser alguns ligados a
problemas éticos.
Ao final do artigo que publicaram na "Science", porém, há
uma referência dos autores a
"questões filosóficas" que tal
avanço traz. Seriam as mesmas
a que os autores que pregam
uma convergência e uma singularidade tecnológicas, como
Ray Kurzweil, levantam? Se
sim, então a própria questão da
natureza humana (e a noção
correlata de "imagem de
Deus") é levantada.
Não parece ser o caso, a julgar pelas reações até aqui, mas
à medida que, com tais avanços
científico-tecnólogos se aproximam do próprio homem,
mais estas questões filosóficas
e teológicas de maior fôlego
voltam à superfície. Talvez,
malgrado as intenções explícitas, cientistas como Craig Venter se envolvam na "Biotecnologia como Religião" (Leigh
Turner), a tal ponto que os teólogos terão que passar a tocha
da reflexão teológica para eles...
EDUARDO CRUZ é professor do Departamento
de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP
(Pontifícia Universidade católica de São Paulo)
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