São Paulo, domingo, 22 de junho de 2008

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Mito ou Verdade?

A coroação da razão humana seria revelar o plano da Criação

Q uando resolvi que seria físico, tinha em mente um caminho bem claro: queria participar da busca pelas leis que estão por trás de tudo o que existe na natureza, as leis que ditam desde a origem do Universo até o comportamento dos átomos e das partículas de matéria.
Inspirado por livros como "A Evolução da Física", de Leopold Infeld e Albert Einstein, entendi que essa era a grande crença das ciências físicas, que a diversidade do mundo é uma ilusão dos sentidos. Ocultas entre as aparências estão essas leis fundamentais, esperando para serem descobertas.
O ápice do conhecimento, a coroação da razão humana, seria revelar o plano da Criação. Como escreveu Stephen Hawking em "Uma Breve História do Tempo", a descoberta dessas leis, da unificação de todos os processos naturais, seria equivalente a conhecer a "mente de Deus".
Não há dúvida que esse "Deus" de Hawking é uma metáfora, que ele não se referia ao Deus judaico-cristão.
Sendo esse o caso, que Deus é esse? Por que cientistas como Hawking e o Prêmio Nobel Steven Weinberg, por que imortais como Einstein e os arquitetos da física quântica Max Planck, Erwin Schrödinger e Werner Heisenberg dedicaram tantos anos de suas vidas à busca dessa teoria unificada? Por que milhares de físicos hoje continuam essa busca, convictos de que essa unificação existe? Tudo começou, como sempre, na Grécia antiga. Os filósofos da escola de Pitágoras, famoso pelo teorema dos triângulos retângulos (que, aparentemente, ele não inventou), acreditavam que a essência da natureza era matemática: os números, e as relações entre eles, descrevem tudo o que ocorre. O objetivo da filosofia era entender como. Segundo os pitagóricos, números e geometria eram inseparáveis.
O exemplo do triângulo torna isso claro, já que os comprimentos dos três lados do triângulo são dados por números relacionados por uma equação.
Formas e números, portanto, expressam a realidade.
O grande filósofo Platão abraçou a idéia dos pitagóricos e foi além. Segundo ele, a geometria era o caminho da verdade. A essência da realidade era geométrica e só podia ser contemplada pela mente. Simetria passou a ser sinônimo de beleza e de verdade.
Para Platão, o arquiteto divino do cosmo (que ele chamou de Demiurgo) era um geômetra.
Chegando ao século 17, Galileu, Kepler e, mais tarde, Newton abraçaram a geometria como a língua da natureza. Os "Principia", a obra em que Newton elabora os princípios da mecânica e a lei da gravidade, são escritos como um tratado geométrico. Inspirados pelo sucesso desses patriarcas, os físicos abraçaram o conceito de simetria platônico: por trás da diversidade dos fenômenos naturais, além das distorções de nossa percepção da realidade, há uma ordem que pode ser expressa em termos matemáticos. Essa ordem é a expressão máxima da verdade e cabe ao cientista desvendá-la. É ela a "mente de Deus". (Literalmente, para Kepler e Newton.)
Não há dúvida de que a idéia de simetria serviu bem à física. Ainda serve. Ela simplifica as equações: o Sol pode ser tratado como uma esfera, mesmo que não seja. Mas a avidez com que a idéia de unificação de tudo é buscada indica algo mais profundo.
No curto espaço dessa coluna, afirmo apenas que ela é diferente da idéia de que simetrias são boas aproximações para descrever o mundo natural. Não encontramos (ainda) indícios de que ela exista. Talvez porque seja mesmo muito sutil, ou talvez porque seja uma ilusão, um mito.
Seria herético imaginar que a natureza não se presta às nossas expectativas de ordem?


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"


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