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+ Marcelo Gleiser
Vida artificial
Temos desafios morais e éticos que há 20 anos seriam ficção
Uma das questões científicas
que mais assusta e cativa o público é a manipulação artificial
dos seres vivos pelo homem. Começando com a origem da vida, ainda
inexplicada, passando pela engenharia genética de animais e terminando
com a possibilidade de prolongar a vida -quem sabe até indefinidamente-
, é impossível não se deixar levar pelas
emoções despertadas pela pesquisa
nessas áreas.
Toda semana, lemos sobre novas
descobertas sensacionais em um desses campos, e nos deparamos com desafios morais e éticos que, vinte anos
atrás, eram mais coisa de ficção científica do que de ciência concreta. Os temores e maravilhamento vêm precisamente dessa transposição da ficção
ao real. Uma coisa é ler um livro sobre
a criação de novas formas de vida. Outra é saber que isso está ocorrendo em
laboratórios pelo mundo afora.
Recentemente, cientistas conseguiram implantar o código genético inteiro de uma bactéria em outra de
uma espécie próxima. O mais fabuloso
disso foi aquilo que ocorreu após o
transplante. O micróbio que recebeu o
implante passou a exibir todas as propriedades e traços do doador, efetivamente transformando-se nele; nas colônias resultantes, não havia traço da
identidade da bactéria original.
Os detalhes do processo são extremamente complexos. Vale mencionar
que a margem de sucesso é ainda pequena: apenas uma bactéria em 150
mil aceitaram o novo DNA. Ademais,
como as moléculas de DNA são extremamente longas, sua manipulação é
delicada, especialmente se elas têm
mais de 50 mil unidades genéticas.
No entanto, é óbvio que foi aberta
uma nova porta na manipulação artificial dos seres vivos. As possibilidades
são imensas.
Um dos próximos passos é testar se
é possível transplantar material genético preparado artificialmente e não
extraído de outro ser vivo. Hoje, cientistas já podem construir cadeias de
DNA sintético com mais de 100 mil
unidades genéticas, adicionando pedaços a pedaços como num jogo de
Lego, um brinquedo de montar.
Os objetivos são variados, desde a
criação de combustíveis orgânicos até
a cura de doenças. Pode-se imaginar
cenários onde seres vivos seriam projetados para cumprir as mais variadas
tarefas, ou simplesmente para satisfazer os caprichos de clientes suficientemente ricos para criar seus híbridos
de cachorro e gato, ou de bem-te-vi e
iguana. Diante de toda uma nova tecnologia, é difícil imaginar que a criação de seres artificias não terá também seu lado comercial.
Quanto à criação da vida no laboratório, ainda estamos longe. São várias
etapas, e as transições entre elas não
são claras. Apenas, talvez, a primeira
delas seja compreendida, a passagem
de matéria inorgânica, os compostos
que existiam na Terra antes da vida
-amônia, metano, gás carbônico e
água- para aminoácidos, os componentes das proteínas, parte essencial
da química dos seres vivos. Mas a organização de aminoácidos em moléculas complexas, capazes de se reproduzir e, delas, às primeiras células,
ainda permanece obscura. Mesmo assim, esse é um desafio que, acredito,
será resolvido durante as próximas
décadas. Ao menos muito se aprenderá sobre o assunto.
A última das questões, a da mortalidade, também é, hoje, amena à pesquisa científica. Se entendermos como as células envelhecem, poderemos
talvez desacelerar esse processo, prolongando assim a vida. De certa forma,
os avanços da medicina nos últimos
cem anos já fazem isso. Basta comparar a idade média de um adulto em
1850 com a de um adulto hoje. A nossa
relação com a vida mudou muito. E
ainda mudará muito mais.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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