São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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Ciência em Dia

Nomes científicos à venda

Marcelo Leite
editor de Ciência

Para quem já está às voltas com uma investigação do Ibama, por captura e cativeiro supostamente ilegais de animais silvestres da Amazônia, e com uma sindicância no Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), o primatologista de origem holandesa Marc van Roosmalen, 55, convida mais sarna para se coçar. Seu sítio pessoal na internet (www.marcvanroosmalen.com) oferece mercadoria explosiva: nomes científicos de dezenas de espécies amazônicas.
Como o anúncio esclarece, a venda tem propósito respeitável: destinar toda a renda para compra de terras em que a espécie passaria a ser protegida, em reservas particulares do patrimônio natural (as RPPNs previstas na legislação ambiental). No caso de um dos primatas do gênero Ateles apregoados no sítio, um macaco-aranha do Mato Grosso, o especialista planeja comprar 10 mil hectares (100 km2) para preservar uma população geneticamente viável do bicho.
No melhor dos mundos, funcionaria assim: pessoas com bolsos e consciência ambiental profundos -a ponto de dispor de US$ 500 mil a US$ 1 milhão para tornar seus ideais realidade, e de quebra imortalizar o próprio nome- podem pagar a Roosmalen para que ele, quando publicar a descrição científica, batize a espécie em homenagem ao doador.
Ocorre que a Amazônia não é o melhor dos mundos. Não é preciso ser vidente para enxergar que deve dar bode um "estrangeiro" (na realidade, um pesquisador contratado do Inpa) vender para outros prováveis "gringos" o nome de macacos brasileiros, ainda por cima comprando grandes extensões de terra.
Nenhum negócio teria sido fechado, ainda. Os 150 km2 de uma RPPN em processo de formação no município de Novo Aripuanã (AM), que deverão proteger o macaco Callicebus bernhardi, foram adquiridos com recursos doados pelo príncipe Bernardo, da Holanda. Segundo Roosmalen, o primata foi batizado antes da doação, após o príncipe distingui-lo com o prêmio Arca de Ouro em 1997. Outras espécies já foram nomeadas em homenagem a pessoas de suas relações, como Russell Mittermeier, primatologista e dirigente da organização não-governamental Conservation International (CI), e o ilustrador Stephen Nash.
Não parece haver nada de ilegal ou de irregular com a venda do nome científico de uma espécie, pois sua escolha depende só da consciência do cientista que a descreve. Houve alguma polêmica de fundo ético quando a organização alemã Biopat (www.gtz.de/biopat) passou a oferecer nomes contra pagamento. Provocada por uma pessoa indignada com esquema similar na Austrália, a Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica (ICZN, na abreviação inglesa) disse que não tinha mandato para examinar os motivos de quem batiza uma espécie, apenas seu impacto na biologia.
Dois especialistas ouvidos por esta coluna não foram em princípio contrários à idéia de angariar dessa maneira fundos para conservação de espécies -dada a escassez de verbas para tal finalidade no Brasil. Ambos testemunharam a idoneidade de Marc van Roosmalen, que é provavelmente o pesquisador que mais primatas descobriu e descreveu no Brasil nos últimos anos -como os saguis Callithrix manicorensis e Callithrix acariensis, de uma só vez, em 2000.
É provável que vozes dispostas a censurar Roosmalen pela comercialização dos nomes nunca tenham realizado feitos científicos desse porte. Também é provável que o pesquisador prefira manter essa atividade distante dos brasileiros (pois seu sítio está disponível só em inglês). Difícil é prever se haverá serenidade para fazer uma avaliação objetiva dos prós e contras desse comércio de luxo.


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