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ENTREVISTA DA 2ª
WILLIAM HURLBUT
Médico do conselho de bioética de Bush defende alterar célula humana para impedi-la de virar embrião
Bioeticista vê fraude coreana como chance de clone "moral"
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
A dupla fraude do cientista sul-coreano Woo-Suk Hwang em
seus trabalhos sobre clonagem terapêutica praticamente fez voltar
à estaca zero a esperança de usar a
técnica para obter curas. William
Hurlbut, no entanto, vê esse revés
sob uma luz mais positiva: é hora
de aproveitar a oportunidade para escapar das armadilhas morais
da clonagem, argumenta ele.
"Essencialmente, deram-nos a
chance de reescrever a história
dessa tecnologia, uma chance de
ir fundo e estabelecer fundamentos sociais, científicos e éticos que
sejam sólidos", afirma Hurlbut,
60, bioeticista da prestigiosa Universidade Stanford, na Califórnia
e membro do Conselho Presidencial de Bioética dos EUA.
Hurlbut é o principal proponente da chamada ANT (transferência nuclear alterada, na sigla
inglesa), uma forma de clonagem
terapêutica que, pelo menos em
tese, poderia escapar do dilema
que ainda faz de muita gente inimiga da tecnologia. Afinal, hoje é
preciso destruir o embrião recém-clonado para obter suas preciosas
células-tronco, capazes de se
transformar em qualquer tecido
do organismo. Também em tese,
tal versatilidade as transformaria
na ferramenta ideal para reconstruir órgãos lesados por doenças
degenerativas hoje incuráveis, como Parkinson ou diabetes.
O problema ético, para muitos,
é destruir o embrião, que poderia
ser considerado um ser humano
em potencial. Hurlbut diz que é
possível criar uma entidade sem o
status moral de um embrião, mas
com o mesmo potencial biomédico -a presença de células-tronco. "Você não cria um organismo
e, portanto, não viola um ser humano", explicou ele à Folha.
A tese do médico, um cristão
convicto, é de que os seres vivos
possuem o que ele chama de trajetória de desenvolvimento: um caminho claro que vai da fertilização à morte, e que já está contido
no embrião desde o encontro entre o espermatozóide e óvulo
-pelo menos potencialmente.
Se, antes de transferir o núcleo de
uma célula adulta para um óvulo
sem núcleo -o que seria o equivalente da fertilização na clonagem-, o núcleo tivesse seu DNA
alterado para que nunca fosse capaz dessa trajetória completa, o
dilema sumiria.
Parece ficção científica, mas o
especialista em clonagem Rudolf
Jaenisch, do MIT (Instituto de
Tecnologia de Massachusetts)
mostrou em outubro passado, em
camundongos, que a idéia pode
funcionar. Ele "deletou" um gene
que permite a formação da placenta, de forma que o produto da
clonagem não desenvolve a estrutura de um embrião normal
-embora ainda produza as células-tronco em seu interior.
Em entrevista por telefone,
Hurlbut falou sobre o caso
Hwang, a guerra entre defensores
e detratores da clonagem nos
EUA e sua visão sobre o conflituoso diálogo entre religião e ciência.
Folha - Hwang conseguiu ser aclamado mundialmente antes que se
descobrisse que todos os seu trabalhos com clonagem humana eram
uma fraude. Como o sr. acha que ele
conseguiu ir tão longe?
William Hurlbut - É muito difícil
de entender, porque esse comportamento não interessava nem
mesmo a ele. Ele arruinou o que já
era uma carreira cheia de prestígio e feriu a ciência e seu país. Nós
ainda não sabemos tudo o que
aconteceu, e acho que ainda temos de ser um pouco cautelosos,
embora pareça que ele tenha falseado a verdade, ato também conhecido como mentir.
Folha - O sr. acha que demorou
tanto para que ele fosse desmascarado porque ele conseguiu manipular as esperanças das pessoas e dos
próprios cientistas?
William Hurlbut - Foi isso o que
um cientista de Harvard disse
num artigo para o [jornal] "Washington Post". Segundo ele, as revistas científicas estão tão ansiosas para publicar esses temas
quentes que os empurram para a
frente rápido demais, e portanto
há muita literatura ruim sobre
pesquisa com células-tronco por
aí. E isso não diz muita coisa boa
sobre as revistas...
Folha - E nem do processo de revisão que elas usam para aceitar as
pesquisas, certo?
Hurlbut - Sim, é um grande erro
permitir que o processo de revisão fique comprometido desse
jeito. O que dá para dizer sobre isso? Bem, a ciência é comandada
por seres humanos, e os seres humanos acabam sendo influenciados de forma tola ou inconsciente
por pressões sociais. A ciência
não é diferente de nenhum outro
empreendimento humano. Ultimamente, ela lembra mais a religião do que qualquer outra coisa.
Como conseqüência disso, ela sofre dos mesmos problemas que
historicamente afetaram a religião: triunfalismo, arrogância, falta de autocrítica.
Folha - Mas, apesar de tudo isso, a
ciência tem um sistema interno de
correção de erros, coisa que a religião não tem...
Hurlbut - Bem, isso é parcialmente verdade, a ciência abrange
um domínio limitado de afirmações sobre as coisas. Ela conta
com as evidências publicamente
acessíveis e com um tipo de razão
que não pode ser exigida do pensamento abstrato e místico. Isso
não quer dizer que a razão abstrata e mística não seja verdadeira. O
fato é que há muitos mistérios na
biologia nos quais
a ciência não consegue penetrar.
Como a consciência, por exemplo
-não temos a
menor idéia do
que ela seja.
Hoje, não temos
um entendimento
maduro do que é
o conceito de organismo. Tendemos a pensar nos
organismos como
uma coleção de
partes químicas,
mas aí algumas
propriedades que
não conseguimos
explicar emergem
neles. Então, eu
diria que a ciência não é tão objetiva quanto parece, e a razão, aliás,
desempenha um papel muito
grande em algumas religiões, como o catolicismo.
Folha - Os pesquisadores da área
costumam negar que o comportamento de Hwang vai afetar os estudos sobre células-tronco de forma
negativa. O sr. concorda?
Hurlbut - Bom, na prática, eu
acho que a situação vai afetar a reputação da biologia de células-tronco como um todo, e especialmente os esforços com clonagem.
Há algo na idéia que incomoda as
pessoas. Entre 60% e 80% dos
americanos se incomoda com a
criação de embriões só para obter
células deles. Eles reagem de forma um pouco diferente quanto a
usar embriões de clínicas de fertilização que iam ser jogados fora
de qualquer jeito -os americanos são muito pragmáticos. E eu
acho que a clonagem tanto cria
um ser embrionário quanto gera
essa aura de ficção
científica que prejudica a área toda. O
caso Hwang só vai
prejudicá-la ainda
mais. É um revés
enorme para a pesquisa. Ela vai se recuperar? Claro, mas isso também nos leva
de volta à estaca zero
na ciência. Todas as
afirmações feitas antes ficaram meio embaraçosas agora.
Folha - O sr. fez uma
nova proposta para
tentar a ANT (transferência nuclear alterada). A idéia é ativar
genes que só funcionam durante o estágio em que surgem as
células-tronco embrionárias saltando as outras fases
do desenvolvimento?
Hurlbut - Sim. A proposta ainda
precisa ser estabelecida, mas é
muito razoável e intrigante. A
idéia é que você nunca chega a
criar um embrião, porque nunca
cria uma entidade totipotente. Essa distinção entre totipotente e
pluripotente é muito importante
e nós a traçamos num documento
do Conselho Presidencial de Bioética. Totipotente se refere à célula
ou às células capazes de gerar um
organismo inteiro e integrado.
Folha - Incluindo a placenta.
Hurlbut - Sim. Pluripotente quer
dizer apenas capaz de produzir
muitos tipos de célula e isso não
inclui a placenta. O importante
não é tanto ser capaz de produzir
qualquer linhagem [tipo] celular
específica, mas ser capaz ou não
de produzir o organismo integrado, a unidade, a interação coordenada e coerente de partes, pois isso é o que define um organismo.
Por exemplo,
quando você vê
uma menininha
de quatro anos,
nunca vai dizer
que ela é infértil.
Você diria que a
fertilidade está
nela, mas ainda
não se expressou.
Da mesma forma,
a primeira célula
de um embrião
humano, criada
por fertilização ou
clonagem, contém em si a potência ativa para a expressão completa
de um ser humano. E é isso o que
faz dela uma entidade moral. Um
embrião humano
é o estágio da vida onde o todo
produz as partes, mas o todo está
presente desde o começo.
Trata-se de um salto do zero para um organismo. E é isso o que a
ANT impede: ao desligar um gene, ou alterar os padrões de expressão [funcionamento] de um
gene, ela impede a formação de
um ser totipotente, e produz apenas células pluripotentes.
É uma alteração que está presente desde o princípio. A entidade criada simplesmente começa a
se formar sem os elementos essenciais para o desenvolvimento
humano. É verdade que ela pode
evoluir de forma aparentemente
normal por algumas divisões celulares, mas o mesmo acontece
com os teratomas -tumores que
formam algo parecido com um
saco de peças de quebra-cabeças
soltas. Eles nunca formam a imagem do quebra-cabeças -ou seja, o organismo humano.
É isso o que Rudolf Jaenisch
conseguiu ao desligar o gene Cdx-2 [que gera o trofectoderma, precursor da placenta]. Cria-se uma
coisa incapaz de formar o eixo
corporal ou mesmo a forma básica do corpo de um ser humano.
Parece-me razoável dizer que,
nesse sentido, não seria um embrião humano. Jaenisch disse isso
ao Senado, e concordo com ele.
Folha - Criar uma entidade dessas
não seria uma violação tão grande
da natureza humana quanto destruir um embrião real?
Hurlbut - Não dá para violar algo
que não é um ser vivo. Há um ditado sobre Oakland, uma cidade
da Califórnia que fica perto de San
Francisco: "Não há um "lá" lá", no
sentido de que é uma
cidade grande e homogênea sem um
centro claro. Então,
meu argumento é:
não há um "lá" lá.
Você não cria um organismo e, portanto,
não viola um ser humano. Se o projeto fizer o que deve, é só
uma manipulação de
produtos laboratoriais de origem humana, e fazemos isso
o tempo todo.
Admito que estamos chegando muito
perto do coração das
nossas origens e da
nossa biologia básica,
e, nesse sentido, é
preciso uma dose extra de cautela. É como
andar na beira do abismo. Mas essa idéia coloca uma cerca diante
de outro abismo -estávamos a
ponto de cair e aceitar o uso instrumental da vida humana em desenvolvimento. Claro, há dois perigos. Você pode violar a dignidade e a vida humanas, mas o outro
perigo é não achar uma solução
que nos traga curas e sacie o desejo social de ir em frente com essas
pesquisas, que é um desejo razoável. Como cientista e médico, vi
como é a grande a necessidade
humana disso, e acho que deveríamos abrir caminho de forma
moral, se possível.
Folha - E se soubéssemos com certeza que um embrião de clínica de
fertilização congelado não conta
com o potencial para a trajetória
completa de desenvolvimento? Seria correto usá-lo?
Hurlbut -Esse tipo de situação,
na verdade, inspirou a ANT. Alguns embriões simplesmente têm
trajetórias curtas -se você tiver,
por exemplo, o número errado de
genes ou cromossomos [estruturas enoveladas que guardam o
DNA]. A maioria das combinações anormais de cromossomos
simplesmente não se desenvolvem. Então, eu diria que há muitos, muitos casos naturais onde a
fertilização ocorre mas não há um
organismo humano real. Não estamos tentando definir onde está
a fronteira, só queremos ficar do
lado seguro dela.
Folha - O sr. acha que embriões
humanos têm direitos intrínsecos?
Hurlbut -Essa é uma pergunta
engraçada. Não temos sentimentos morais naturais por algo tão
informe. Mas há um ser vivo lá, e,
se você for defender a existência
humana, pode pelo menos não
usá-lo de forma instrumental.
Não devemos a esse ser humano
incipiente todos os nossos recursos para salvar sua vida, como faríamos com um filho de três anos,
porque nossa relação com ele é diferente. Mas não podemos nos
fiar apenas em sentimentos morais naturais. Há alguns níveis de
existência humana os quais não
temos o direito de tratar como se
fossem só matéria e informação.
Folha - Como é fazer parte de um
conselho do governo Bush, a comunidade de pesquisa dos EUA vê como inimigo da ciência?
Hurlbut - O presidente Bush nos
disse que o que acontecer na biotecnologia poderá marcar seu governo mais do que qualquer outra
coisa. Se um ser humano for clonado durante seu governo, isso o
marcaria historicamente muito
mais que a guerra no Iraque. Porque esses são dilemas de toda a
nossa espécie, que vão além de
qualquer cultura ou época. Estão
exigindo de nós que pensemos
sobre coisas que não têm raízes
diretas em nenhuma tradição e
que nos impõem problemas potencialmente muito sérios, bem
como possibilidades positivas.
Temos de fazer a coisa certa.
Folha - Como o sr. vê o abismo entre religião e ciência que tem surgido no debate sobre a pesquisa com
células-tronco?
Hurlbut - Acho uma tragédia que
esse debate esteja polarizando a
ciência e a religião. Recebi uma
carta recentemente de uma jovem
cuja mãe foi diagnosticada com
mal de Parkinson, e a moça queria
tanto que a pesquisa com células-tronco embrionárias fosse em
frente que isso a levou a questionar sua fé como cristã. E ela me
disse: "Muito obrigado por tentar
achar um caminho no qual eu
posso tanto ter esperança na cura
da minha mãe quanto manter minha fé". E eu acho que é isso que
está em jogo aqui: algo dessa profundidade. Ao fazer disso uma divisão polêmica e prática, estamos
machucando nossa sociedade.
Folha - Será que há mesmo esperança de que essa divisão suma?
Hurlbut - Acho que, agora que o
trabalho dos coreanos foi desacreditado, temos uma oportunidade única de reescrever a história de tudo isso, de modo a conseguir avanços científicos e médicos
positivos num contexto de consenso social e preocupação com
os princípios morais que estão em
jogo. Com a ANT, podemos conseguir. Os governos poderiam financiar esse tipo de pesquisa. Esse não é só um problema americano. No fim das contas, as pessoas
razoáveis vão se juntar e buscar
uma terceira opção, porque ninguém está ganhando.
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