São Paulo, segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª

WILLIAM HURLBUT

Médico do conselho de bioética de Bush defende alterar célula humana para impedi-la de virar embrião

Bioeticista vê fraude coreana como chance de clone "moral"

REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

A dupla fraude do cientista sul-coreano Woo-Suk Hwang em seus trabalhos sobre clonagem terapêutica praticamente fez voltar à estaca zero a esperança de usar a técnica para obter curas. William Hurlbut, no entanto, vê esse revés sob uma luz mais positiva: é hora de aproveitar a oportunidade para escapar das armadilhas morais da clonagem, argumenta ele.
"Essencialmente, deram-nos a chance de reescrever a história dessa tecnologia, uma chance de ir fundo e estabelecer fundamentos sociais, científicos e éticos que sejam sólidos", afirma Hurlbut, 60, bioeticista da prestigiosa Universidade Stanford, na Califórnia e membro do Conselho Presidencial de Bioética dos EUA.
Hurlbut é o principal proponente da chamada ANT (transferência nuclear alterada, na sigla inglesa), uma forma de clonagem terapêutica que, pelo menos em tese, poderia escapar do dilema que ainda faz de muita gente inimiga da tecnologia. Afinal, hoje é preciso destruir o embrião recém-clonado para obter suas preciosas células-tronco, capazes de se transformar em qualquer tecido do organismo. Também em tese, tal versatilidade as transformaria na ferramenta ideal para reconstruir órgãos lesados por doenças degenerativas hoje incuráveis, como Parkinson ou diabetes.
O problema ético, para muitos, é destruir o embrião, que poderia ser considerado um ser humano em potencial. Hurlbut diz que é possível criar uma entidade sem o status moral de um embrião, mas com o mesmo potencial biomédico -a presença de células-tronco. "Você não cria um organismo e, portanto, não viola um ser humano", explicou ele à Folha.
A tese do médico, um cristão convicto, é de que os seres vivos possuem o que ele chama de trajetória de desenvolvimento: um caminho claro que vai da fertilização à morte, e que já está contido no embrião desde o encontro entre o espermatozóide e óvulo -pelo menos potencialmente. Se, antes de transferir o núcleo de uma célula adulta para um óvulo sem núcleo -o que seria o equivalente da fertilização na clonagem-, o núcleo tivesse seu DNA alterado para que nunca fosse capaz dessa trajetória completa, o dilema sumiria.
Parece ficção científica, mas o especialista em clonagem Rudolf Jaenisch, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) mostrou em outubro passado, em camundongos, que a idéia pode funcionar. Ele "deletou" um gene que permite a formação da placenta, de forma que o produto da clonagem não desenvolve a estrutura de um embrião normal -embora ainda produza as células-tronco em seu interior.
Em entrevista por telefone, Hurlbut falou sobre o caso Hwang, a guerra entre defensores e detratores da clonagem nos EUA e sua visão sobre o conflituoso diálogo entre religião e ciência.

Folha - Hwang conseguiu ser aclamado mundialmente antes que se descobrisse que todos os seu trabalhos com clonagem humana eram uma fraude. Como o sr. acha que ele conseguiu ir tão longe?
William Hurlbut -
É muito difícil de entender, porque esse comportamento não interessava nem mesmo a ele. Ele arruinou o que já era uma carreira cheia de prestígio e feriu a ciência e seu país. Nós ainda não sabemos tudo o que aconteceu, e acho que ainda temos de ser um pouco cautelosos, embora pareça que ele tenha falseado a verdade, ato também conhecido como mentir.

Folha - O sr. acha que demorou tanto para que ele fosse desmascarado porque ele conseguiu manipular as esperanças das pessoas e dos próprios cientistas?
William Hurlbut -
Foi isso o que um cientista de Harvard disse num artigo para o [jornal] "Washington Post". Segundo ele, as revistas científicas estão tão ansiosas para publicar esses temas quentes que os empurram para a frente rápido demais, e portanto há muita literatura ruim sobre pesquisa com células-tronco por aí. E isso não diz muita coisa boa sobre as revistas...

Folha - E nem do processo de revisão que elas usam para aceitar as pesquisas, certo?
Hurlbut -
Sim, é um grande erro permitir que o processo de revisão fique comprometido desse jeito. O que dá para dizer sobre isso? Bem, a ciência é comandada por seres humanos, e os seres humanos acabam sendo influenciados de forma tola ou inconsciente por pressões sociais. A ciência não é diferente de nenhum outro empreendimento humano. Ultimamente, ela lembra mais a religião do que qualquer outra coisa. Como conseqüência disso, ela sofre dos mesmos problemas que historicamente afetaram a religião: triunfalismo, arrogância, falta de autocrítica.

Folha - Mas, apesar de tudo isso, a ciência tem um sistema interno de correção de erros, coisa que a religião não tem...
Hurlbut -
Bem, isso é parcialmente verdade, a ciência abrange um domínio limitado de afirmações sobre as coisas. Ela conta com as evidências publicamente acessíveis e com um tipo de razão que não pode ser exigida do pensamento abstrato e místico. Isso não quer dizer que a razão abstrata e mística não seja verdadeira. O fato é que há muitos mistérios na biologia nos quais a ciência não consegue penetrar. Como a consciência, por exemplo -não temos a menor idéia do que ela seja.
Hoje, não temos um entendimento maduro do que é o conceito de organismo. Tendemos a pensar nos organismos como uma coleção de partes químicas, mas aí algumas propriedades que não conseguimos explicar emergem neles. Então, eu diria que a ciência não é tão objetiva quanto parece, e a razão, aliás, desempenha um papel muito grande em algumas religiões, como o catolicismo.

Folha - Os pesquisadores da área costumam negar que o comportamento de Hwang vai afetar os estudos sobre células-tronco de forma negativa. O sr. concorda?
Hurlbut -
Bom, na prática, eu acho que a situação vai afetar a reputação da biologia de células-tronco como um todo, e especialmente os esforços com clonagem. Há algo na idéia que incomoda as pessoas. Entre 60% e 80% dos americanos se incomoda com a criação de embriões só para obter células deles. Eles reagem de forma um pouco diferente quanto a usar embriões de clínicas de fertilização que iam ser jogados fora de qualquer jeito -os americanos são muito pragmáticos. E eu acho que a clonagem tanto cria um ser embrionário quanto gera essa aura de ficção científica que prejudica a área toda. O caso Hwang só vai prejudicá-la ainda mais. É um revés enorme para a pesquisa. Ela vai se recuperar? Claro, mas isso também nos leva de volta à estaca zero na ciência. Todas as afirmações feitas antes ficaram meio embaraçosas agora.

Folha - O sr. fez uma nova proposta para tentar a ANT (transferência nuclear alterada). A idéia é ativar genes que só funcionam durante o estágio em que surgem as células-tronco embrionárias saltando as outras fases do desenvolvimento?
Hurlbut -
Sim. A proposta ainda precisa ser estabelecida, mas é muito razoável e intrigante. A idéia é que você nunca chega a criar um embrião, porque nunca cria uma entidade totipotente. Essa distinção entre totipotente e pluripotente é muito importante e nós a traçamos num documento do Conselho Presidencial de Bioética. Totipotente se refere à célula ou às células capazes de gerar um organismo inteiro e integrado.

Folha - Incluindo a placenta.
Hurlbut -
Sim. Pluripotente quer dizer apenas capaz de produzir muitos tipos de célula e isso não inclui a placenta. O importante não é tanto ser capaz de produzir qualquer linhagem [tipo] celular específica, mas ser capaz ou não de produzir o organismo integrado, a unidade, a interação coordenada e coerente de partes, pois isso é o que define um organismo.
Por exemplo, quando você vê uma menininha de quatro anos, nunca vai dizer que ela é infértil. Você diria que a fertilidade está nela, mas ainda não se expressou. Da mesma forma, a primeira célula de um embrião humano, criada por fertilização ou clonagem, contém em si a potência ativa para a expressão completa de um ser humano. E é isso o que faz dela uma entidade moral. Um embrião humano é o estágio da vida onde o todo produz as partes, mas o todo está presente desde o começo.
Trata-se de um salto do zero para um organismo. E é isso o que a ANT impede: ao desligar um gene, ou alterar os padrões de expressão [funcionamento] de um gene, ela impede a formação de um ser totipotente, e produz apenas células pluripotentes.
É uma alteração que está presente desde o princípio. A entidade criada simplesmente começa a se formar sem os elementos essenciais para o desenvolvimento humano. É verdade que ela pode evoluir de forma aparentemente normal por algumas divisões celulares, mas o mesmo acontece com os teratomas -tumores que formam algo parecido com um saco de peças de quebra-cabeças soltas. Eles nunca formam a imagem do quebra-cabeças -ou seja, o organismo humano.
É isso o que Rudolf Jaenisch conseguiu ao desligar o gene Cdx-2 [que gera o trofectoderma, precursor da placenta]. Cria-se uma coisa incapaz de formar o eixo corporal ou mesmo a forma básica do corpo de um ser humano. Parece-me razoável dizer que, nesse sentido, não seria um embrião humano. Jaenisch disse isso ao Senado, e concordo com ele.

Folha - Criar uma entidade dessas não seria uma violação tão grande da natureza humana quanto destruir um embrião real?
Hurlbut -
Não dá para violar algo que não é um ser vivo. Há um ditado sobre Oakland, uma cidade da Califórnia que fica perto de San Francisco: "Não há um "lá" lá", no sentido de que é uma cidade grande e homogênea sem um centro claro. Então, meu argumento é: não há um "lá" lá. Você não cria um organismo e, portanto, não viola um ser humano. Se o projeto fizer o que deve, é só uma manipulação de produtos laboratoriais de origem humana, e fazemos isso o tempo todo.
Admito que estamos chegando muito perto do coração das nossas origens e da nossa biologia básica, e, nesse sentido, é preciso uma dose extra de cautela. É como andar na beira do abismo. Mas essa idéia coloca uma cerca diante de outro abismo -estávamos a ponto de cair e aceitar o uso instrumental da vida humana em desenvolvimento. Claro, há dois perigos. Você pode violar a dignidade e a vida humanas, mas o outro perigo é não achar uma solução que nos traga curas e sacie o desejo social de ir em frente com essas pesquisas, que é um desejo razoável. Como cientista e médico, vi como é a grande a necessidade humana disso, e acho que deveríamos abrir caminho de forma moral, se possível.

Folha - E se soubéssemos com certeza que um embrião de clínica de fertilização congelado não conta com o potencial para a trajetória completa de desenvolvimento? Seria correto usá-lo?
Hurlbut -
Esse tipo de situação, na verdade, inspirou a ANT. Alguns embriões simplesmente têm trajetórias curtas -se você tiver, por exemplo, o número errado de genes ou cromossomos [estruturas enoveladas que guardam o DNA]. A maioria das combinações anormais de cromossomos simplesmente não se desenvolvem. Então, eu diria que há muitos, muitos casos naturais onde a fertilização ocorre mas não há um organismo humano real. Não estamos tentando definir onde está a fronteira, só queremos ficar do lado seguro dela.

Folha - O sr. acha que embriões humanos têm direitos intrínsecos?
Hurlbut -
Essa é uma pergunta engraçada. Não temos sentimentos morais naturais por algo tão informe. Mas há um ser vivo lá, e, se você for defender a existência humana, pode pelo menos não usá-lo de forma instrumental. Não devemos a esse ser humano incipiente todos os nossos recursos para salvar sua vida, como faríamos com um filho de três anos, porque nossa relação com ele é diferente. Mas não podemos nos fiar apenas em sentimentos morais naturais. Há alguns níveis de existência humana os quais não temos o direito de tratar como se fossem só matéria e informação.

Folha - Como é fazer parte de um conselho do governo Bush, a comunidade de pesquisa dos EUA vê como inimigo da ciência?
Hurlbut -
O presidente Bush nos disse que o que acontecer na biotecnologia poderá marcar seu governo mais do que qualquer outra coisa. Se um ser humano for clonado durante seu governo, isso o marcaria historicamente muito mais que a guerra no Iraque. Porque esses são dilemas de toda a nossa espécie, que vão além de qualquer cultura ou época. Estão exigindo de nós que pensemos sobre coisas que não têm raízes diretas em nenhuma tradição e que nos impõem problemas potencialmente muito sérios, bem como possibilidades positivas. Temos de fazer a coisa certa.

Folha - Como o sr. vê o abismo entre religião e ciência que tem surgido no debate sobre a pesquisa com células-tronco?
Hurlbut -
Acho uma tragédia que esse debate esteja polarizando a ciência e a religião. Recebi uma carta recentemente de uma jovem cuja mãe foi diagnosticada com mal de Parkinson, e a moça queria tanto que a pesquisa com células-tronco embrionárias fosse em frente que isso a levou a questionar sua fé como cristã. E ela me disse: "Muito obrigado por tentar achar um caminho no qual eu posso tanto ter esperança na cura da minha mãe quanto manter minha fé". E eu acho que é isso que está em jogo aqui: algo dessa profundidade. Ao fazer disso uma divisão polêmica e prática, estamos machucando nossa sociedade.

Folha - Será que há mesmo esperança de que essa divisão suma?
Hurlbut -
Acho que, agora que o trabalho dos coreanos foi desacreditado, temos uma oportunidade única de reescrever a história de tudo isso, de modo a conseguir avanços científicos e médicos positivos num contexto de consenso social e preocupação com os princípios morais que estão em jogo. Com a ANT, podemos conseguir. Os governos poderiam financiar esse tipo de pesquisa. Esse não é só um problema americano. No fim das contas, as pessoas razoáveis vão se juntar e buscar uma terceira opção, porque ninguém está ganhando.


Texto Anterior: Panorâmica - Personalidade: Jornal britânico põe Marina Silva entre os dez maiores "eco-guerreiros'
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.