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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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Ciência em Dia

Moratória para a nanotecnologia

Marcelo Leite
editor de Ciência

Com razão ou sem ela, as pessoas aprenderam a temer tudo que a tecnociência produz de pequeno ou invisível e que tem potencial para causar dano a seres humanos e ao ambiente. Foi assim com a fissão nuclear, com a poluição química e atmosférica, com os organismos geneticamente modificados (OGMs). Não há motivo para que não seja assim com a nanotecnologia (materiais e dispositivos na escala de um nanômetro, ou milionésimo de milímetro).
Pode parecer prematuro discutir os riscos de uma tecnologia cujos produtos nem mesmo parecem ter chegado ao mercado, mas há gente que convém ouvir dizendo que a hora já chegou. A organização não-governamental ETC (www.etcgroup.org), por exemplo. Ela lançou na Cúpula de Johannesburgo, em setembro de 2002, a idéia de uma moratória para pesquisas nanotecnológicas.
Quem achar que se trata de ONG sem importância ou audiência deveria dar uma palavrinha com os defensores dos alimentos transgênicos. Eles poderão narrar o trauma que lhes foi causado pela ONG antecessora do ETC, Rafi (sigla em inglês de Fundação Internacional para o Avanço Rural). A Rafi moveu campanha renhida contra os OGMs e marcou um tento memorável ao cunhar o apelido "Terminator" (exterminador) para a tecnologia sinistra que impedia a reprodução de sementes de plantas transgênicas.
O ETC lançou em 30 de janeiro um documento de 84 páginas chamado "The Big Down: Atomtech - Technologies Converging at the Nano-Scale" (que se poderia traduzir como "O Imenso Mínimo: Atomotécnica - Tecnologias que Convergem para a Nanoescala"). Nele se diz que a nanotecnologia já é uma realidade, inclusive de mercado (estimado em US$ 45 bilhões anuais, devendo chegar a incrível US$ 1 trilhão em 2015).
Quanto a riscos, há uma pletora deles, a maioria ainda um tanto teóricos. Por exemplo, a convergência de nanotecnologia com biotecnologia, informática e ciência cognitiva, que ensejaria o pesadelo de um controle de comportamentos que faria do "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley um conto de fadas.
Outros riscos aventados são mais eloquentes, como a ameaça de dispositivos nanoscópicos capazes de produzir cópias de si mesmos, que poderiam um dia cobrir o planeta e torná-lo inabitável. É o fantasma da "gray goo" (meleca cinza) que assombrou Bill Joy num já famoso artigo para a revista "Wired", em 2000.
Aqueles que não confiam em ONGs devem então atentar para o que diz Richard Smalley, Nobel de Química de 1996. Num depoimento ao Congresso dos EUA em 1999, Smalley disse que "o impacto da nanotecnologia na saúde, na riqueza e no padrão de vida das pessoas será no mínimo equivalente às influências combinadas da microeletrônica, do diagnóstico por imagens, da engenharia computadorizada e dos polímeros artificiais neste século" (o 20, no caso).
A citação está num artigo publicado segunda-feira passada na revista britânica "Nanotechnology" (www.iop.org/EJ/S/UNREG/journal/0957-4484), sob o título "Mind the Gap: Science and Ethics in Nanotechnology" (Cuidado com o Vão: Ciência e Ética na Nanotecnologia). O autor principal é Peter A. Singer, bioeticista da Universidade de Toronto (Canadá), que não deve ser confundido com Peter Singer, também bioeticista, mas da Universidade de Princeton (EUA).
É mais um alerta de que a discussão das implicações éticas, ambientais, econômicas, legais e sociais da nanotecnologia precisa começar. Logo. Antes que a proposta de moratória faça algum sentido.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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