UOL


São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

Próximo Texto | Índice

Descobertas passadas costumam ter sua importância exagerada, e o caso da dupla hélice não é exceção. O registro histórico revela uma reação fraca ao anúncio da estrutura do DNA, em 1953. Só quando surgiram as linhas gerais do mecanismo de seu envolvimento na síntese das proteínas os bioquímicos começaram a se interessar pela estrutura

SILÊNCIO NA ESTRÉIA DA DUPLA HÉLICE

por Robert Olby

Recordar o ano de 1953 significa visitar -ou, para alguns de nós, revisitar- outro mundo, um mundo em que a revista "Nature" não usava a abreviação DNA para se referir ao ácido desoxirribonucléico. Em junho daquele ano, Elizabeth 2ª foi coroada no Reino Unido, em meio a muita pompa e cerimônia. Em março, cientistas britânicos se prepararam para construir uma usina de energia atômica às margens do rio Calder. Dois meses mais tarde ocorreu a conquista do monte Everest.
Na Universidade de Londres, meu professor de bioquímica se entusiasmava quando falava sobre o êxito de Frederick Sanger no primeiro sequenciamento das unidades de uma proteína, a insulina. Mas o ácido desoxirribonucléico (DNA) nem sequer era mencionado. No entanto, em 1953, a "Nature" publicou sete artigos sobre a estrutura e a função do DNA, mas apenas um jornal nacional britânico, o "News Chronicle", fez alguma referência à dupla hélice.
Hoje, 50 anos mais tarde, é difícil acreditar que a dupla hélice tenha tido uma recepção tão indiferente. Mas indo às edições dos anos 1950 da "Nature" e da "Science", o que encontramos? O gráfico na pág. 18 registra o número de artigos na "Nature" que fizeram menção a algum aspecto do DNA e, entre eles, os que mencionaram o modelo Watson-Crick ou citaram qualquer um dos artigos de 1953 sobre a estrutura do DNA. Ao longo da década, os volumes da "Nature" foram aumentando de tamanho e, em 1960, o número de volumes publicados por ano dobrou. Esse aumento foi acompanhado por um aumento no número de artigos que trataram de algum aspecto do DNA, mas as referências à dupla hélice não aumentaram. O padrão de citações na "Science" é semelhante.


As reservas dos bioquímicos com a dupla hélice se deviam em parte a que as evidências em 53 eram pouco contundentes


Na época em que a estrutura do DNA foi descoberta, já existia um programa considerável de pesquisas sobre o DNA. Esses estudos incluíam propriedades físicas da molécula, métodos de extração e se o conteúdo e a composição do DNA eram os mesmos em todas as células de um mesmo organismo. Também eram discutidos os efeitos danosos da luz ultravioleta e da radiação ionizante sobre o DNA, e eram apresentadas visões distintas do envolvimento dos ácidos nucléicos na síntese das proteínas. Os pesquisadores que trabalhavam com o DNA naquela época eram, em sua maioria, bioquímicos e físico-químicos, e as instituições para as quais trabalhavam, além do financiamento que recebiam, eram, em sua maioria, ligadas à medicina. Seus interesses e meios de sustento estavam relacionados a duas das principais preocupações da época: a ação dos "mutagênicos" (agentes que provocam mutações no DNA), tema importante para a discussão internacional sobre os efeitos da radiação ionizante e dos materiais radiativos, e a natureza da síntese protéica, de grande interesse para os bioquímicos, em vista de sua importância no crescimento e na nutrição, sem falar nas pesquisas ligadas ao câncer. À luz da recepção apenas morna dada ao anúncio da estrutura do DNA, vamos tomar um ângulo diferente e perguntar o que, nos anos 1950, justificaria que fosse dada à dupla hélice do DNA mais do que uma atenção apenas passageira? Na época, a maioria dos cientistas que liam a "Nature" enxergava o DNA como "proteína conjugada", devido a sua associação com proteínas; era algo importante como tal, mas não por si próprio. Isso apesar do notável trabalho de Oswald Avery, Colin MacLeod e Maclyn McCarty em 1944, seguido pela demonstração feita em 1952 por Al Hershey e Martha Chase de que a maior parte do material que entra numa bactéria vinda de um vírus infectante de bactéria é ácido nucléico, e não proteína. Esses estudos tornavam muito provável que o DNA fosse o material hereditário.

Ligando estrutura a função
Para convencer a comunidade científica, eram necessárias mais informações. O que havia na química do DNA que justificava seu papel na hereditariedade? Uma resposta surgiu com a estrutura proposta por Watson e Crick. Eles descreveram [em seu artigo de 25 de abril de 1953 na "Nature]" como a mais importante de suas "características novas" de "considerável interesse biológico" a formação de pares de bases, em que a adenina forma ligações de hidrogênio com a timina e a guanina, com a citosina. Essa formação de pares, escreveram, "sugere imediatamente um possível mecanismo de cópia do material genético". Aprofundando a teoria num artigo subsequente, que saiu na "Nature" um mês mais tarde [30 de maio], eles escreveram sobre o DNA: "Até agora não tinha sido apresentada nenhuma evidência mostrando como ele pode realizar a operação essencial exigida de um material genético -a autoduplicação exata". Com essas palavras, Watson e Crick reivindicaram sua prioridade sobre um mecanismo de reprodução do DNA, mas admitiram que o esquema que propunham tinha problemas: como as correntes se desenrolam e separam "sem que tudo fique emaranhado"? Qual é o mecanismo exato pelo qual acontece a duplicação de genes? Como o material genético "exerce uma influência altamente específica sobre a célula", quando a sequência de bases que se supõe codificar a especificidade se encontra no interior da molécula helicoidal? O "problema do desenrolamento" [do DNA] dominou boa parte das discussões iniciais que se seguiram à descoberta da estrutura do DNA. Em 1953, Watson e Crick reconheceram que o problema era grande, mas a estrutura que propunham ganhou apoio em 1958, quando Matthew Meselson e Franklin Stahl provaram a natureza semiconservativa da reprodução do DNA: cada uma das duas moléculas novas de DNA formadas durante a reprodução consiste em uma fita da molécula "mãe" original e de uma fita nova sintetizada a partir da fita "mãe", que lhe serviu de molde. Isso confirmava a previsão teórica feita por Watson e Crick a partir da estrutura -de que a reprodução se daria de maneira semiconservativa. Ainda naquele mesmo ano, Arthur Kornberg anunciou a purificação parcial de uma enzima que catalisa a síntese do DNA e que mais tarde seria chamada de DNA-polimerase. Com isso foi traçado o primeiro vínculo entre a enzimologia e a dupla hélice, pois pouco mais tarde Kornberg forneceu evidências bioquímicas de que a DNA-polimerase sintetiza novas fitas a partir de direções opostas das duas cadeias [fitas] da molécula. Em 1957, Crick definiu a "informação" biológica como a sequência das bases nos ácidos nucléicos e dos aminoácidos nas proteínas e propôs o hoje famoso "dogma central", segundo o qual as informações assim definidas fluem entre os ácidos nucléicos e as proteínas em apenas uma direção -dos primeiros para as segundas. Apenas quatro anos mais tarde, Marshall Nirenberg e Heinrich Matthaei sintetizaram com sucesso um polipeptídeo constituído de apenas um tipo de aminoácido (a fenilalanina), usando um RNA composto de apenas um tipo de base (uracila). Eles concluíram que "uma ou mais (das bases de RNA) parecem ser o código da fenilalanina". Enquanto isso, Crick, Sydney Brenner e Leslie Barnett vinham utilizando a análise genética para pesquisar a mutagênese. Isso os levou ao importante conceito de uma forma de mutação, na qual ocorre um deslizamento do quadro de leitura ("frame shift") da sequência das bases no DNA, a partir do que inferiram que a mensagem genética é composta de trios únicos ou múltiplos de bases e que a mensagem é lida começando em um ponto fixo e procede sempre na mesma direção. Desse modo se preparou o palco para a subsequente decifração do código genético completo. De uma recepção pouco entusiasmada em 1953 a um impulso cada vez maior perto do final da década, somos tentados a inferir que a dupla hélice do DNA não foi levada a sério até que começou a tomar forma um mecanismo que explicasse sua participação na síntese protéica. Havia, é claro, um grupo pequeno de cientistas que, desde o início, construiu suas carreiras inteiramente sobre as implicações da estrutura (foi o caso de Meselson e Alexander Rich), ou que redirecionou suas pesquisas para estudá-la (entre esses figuram Seymour Benzer e Sydney Brenner). Muitos cientistas, porém, especialmente Erwin Chargaff e Alexander Dounce, não fizeram referência alguma à estrutura em seus artigos científicos escritos na metade da década, embora já estivesse claro que ela era importante e se presuma que tivessem conhecimento dela. Essas omissões levam a crer que alguns bioquímicos tivessem suas agendas próprias e que, num primeiro momento, a dupla hélice não fosse vista como ajuda para o trabalho deles.

Síntese de proteínas em debate
As reservas dos bioquímicos em relação à dupla hélice se deviam em parte ao fato de que as evidências de sua existência disponíveis em 1953 estavam longe de serem contundentes. Mesmo Watson e Crick admitiam que a dupla hélice "não podia, de maneira alguma, ser vista como algo comprovado", embora fosse "altamente promissora".
A atitude pouco entusiasmada dos bioquímicos se devia em grande parte às discussões entre eles sobre o mecanismo da síntese protéica. O artigo de Peter Campbell e Thomas Work publicado na "Nature" em 6 de junho de 1953 retratou vividamente essa discussão. Eles identificaram duas teorias opostas sobre a origem das proteínas: a teoria dos peptídeos (também conhecida como a teoria das multienzimas), segundo a qual as proteínas são criadas "pelo acoplamento gradativo de muitas unidades pequenas de peptídeos", e a teoria dos moldes, que envolvia a "síntese baseada em moldes, sendo cada molde específico para uma única estrutura protéica e provavelmente identificável com um gene".
O modelo dos peptídeos contou, durante muito tempo, com o apoio de muitos bioquímicos de destaque, incluindo Joseph Fruton. A convicção por trás dele era o poder das enzimas de tanto sintetizar quanto fragmentar seus substratos, com alto grau de especificidade atribuída a ambas as ações. A idéia era que a síntese envolvia a formação de uma sucessão de peptídeos e acabava resultando na molécula de proteína, e as enzimas sintetizam apenas as ligações de peptídeos que também hidrolisam. Mas o problema dessa teoria era que, com a exceção de muito poucos casos especiais, os alegados peptídeos que constituiriam os intermediários na síntese protéica não podiam ser detectados na célula, nem incorporados na proteína que estava sendo sintetizada. Entretanto, os aminoácidos podiam, sim, ser incorporados, indicando que eram eles os blocos básicos dos quais eram feitas as proteínas.
O segundo modelo de síntese protéica, que pressupunha a síntese com base num molde, tinha sido proposto por Dounce em 1952. Ele imaginou cadeias de polipeptídeos sendo dispostas sobre moléculas de RNA, e a sequência do RNA determinando a sequência dos aminoácidos incorporados (numa base de um para um). Assim, o DNA no núcleo controlaria a ordem das bases no RNA. Depois de pesar os méritos e as dificuldades do esquema proposto por Dounce, Campbell e Work expressaram seu repúdio pelo controle genético da síntese protéica, observando, em 1953, que "(...) o gene é essencialmente uma idéia abstrata, e pode ser um erro tentar revestir essa idéia com uma capa de ácido nucléico ou proteína (...). Se precisamos obrigatoriamente ter um gene, ele deveria ter uma função negativa, em lugar de positiva, no que diz respeito à síntese protéica". Mas foi apenas três anos mais tarde que Robert Sinsheimer encerrou uma palestra no Instituto de Tecnologia da Califórnia com as seguintes palavras: "O gene, antes uma abstração formal, começou a se condensar, a assumir forma e estrutura e a apresentar atividade definida".
Esses três anos testemunharam mudanças profundas. Em janeiro de 1957, quando Fruton reviu a segunda edição de seu largamente usado livro didático "General Biochemistry", suas observações sobre a teoria dos peptídeos foram cautelosas e seguidas de uma discussão do papel exercido pelo RNA, em torno do qual, ele observou, "vêm sendo feitas especulações instigantes quando ao papel dos ácidos nucléicos como "moldes" numa síntese protéica". Numa parte anterior do livro ele dedicou um parágrafo à dupla hélice, descrevendo-a como "especulação engenhosa". O único diagrama era do par de bases adenina-timina, em vez do modelo helicoidal da estrutura.
Kornberg tinha mostrado, em 1957, que a reprodução do DNA segue as normas da formação de pares de bases, pelas quais a DNA-polimerase acrescenta uma base à fita recém-sintetizada, base essa que é complementar à base oposta na fita de molde (A sempre fica oposta a T, e C fica sempre oposta a G). Mas seu interesse no assunto não tinha sido estimulado pela descoberta de Watson e Crick. Em lugar disso, em 1953 ele estava interessado em como as coenzimas (compostos não-protéicos necessários para a atividade enzimática) são sintetizadas a partir dos nucleotídeos. Kornberg foi levado a se indagar como o DNA e o RNA poderiam ser compostos de milhares de nucleotídeos. Ele recorda que "o significado da dupla hélice só se fez sentir" em seu trabalho em 1956, depois que ele mostrou que "uma fração moderadamente purificada" daquilo que ele, mais tarde, iria chamar de DNA-polimerase "pareceu aumentar o tamanho de uma cadeia de DNA".
Os dois processos antes enigmáticos -a reprodução do DNA e a síntese das proteínas- fizeram uma intersecção com as pesquisas de química física, orgânica e biológica que estavam sendo conduzidas no início dos anos 1950. Após a descoberta da dupla hélice, os cientistas que procuravam elucidar o problema da reprodução encontraram seu fundamento molecular na estrutura do DNA, embora tenham sido necessárias mais de duas décadas para deduzir o intricado mecanismo de sua operação na célula. Os pesquisadores que trabalhavam com a síntese protéica constataram que a fonte de sua especificidade estava na sequência de base do DNA.
Por que comemorar essa descoberta específica? Por que não comemorar o jubileu de ouro da solução encontrada por Max Perutz para o "problema de fase" das proteínas, em 1953, sem a qual não teria sido possível a subsequente descoberta da estrutura da mioglobina e da hemoglobina? E que tal aguardar até 2005 para comemorar o jubileu de ouro da determinação, por Sanger, da sequência completa de aminoácidos de uma proteína? A dupla hélice possui valor simbólico notável, sem dúvida, e isso contribuiu muito para sua visibilidade pública, coisa que não aconteceu com nenhuma das estruturas protéicas. Além disso, a maneira como ela foi descoberta e as personalidades envolvidas na descoberta ajudaram a tornar mais interessante a história, amplamente difundida pelo relato feito por James Watson em "The Double Helix" (A Dupla Hélice), publicado em 1968, e na recente biografia de Rosalind Franklin escrita por Brenda Maddox ["The Dark Lady of DNA], editora Harper Collins". Mas também existe o caráter central do DNA, que está ligado ao caráter central da hereditariedade na biologia geral.
Os jubileus de ouro e de prata da ascensão da rainha Elizabeth ao trono já ficaram para trás, as usinas nucleares já deixaram de ser construídas no Reino Unido, e uma sequência de alpinistas já escalou o monte Everest sem a fanfarra da divulgação do feito pela imprensa. Mas o DNA é um assunto que permanece sendo notícia -quer seja como ferramenta para o estudo da evolução, para uso em exames de verificação de autores de estupros, como fonte de informações genéticas ou como caminho para a criação de novas drogas. E que melhor emblema ou mascote existe para simbolizar a biologia molecular do que a dupla hélice e sua representação espartana mas elegante, no artigo original, desenhada 50 anos atrás por Odile, a mulher de Francis Crick?

Robert Olby é professor de história e filosofia da ciência na Universidade de Pittsburgh (EUA) e autor de "The Path to the Double Helix" (O Caminho para a Dupla Hélice, editora Dover, 522 págs., US$ 14,95)

Texto originalmente publicado na revista "Nature" (www.nature.com), em 23 de janeiro passado (vol. 421, págs. 402-405).

Tradução de Clara Allain


Próximo Texto: Olby dará palestra quarta-feira na Folha
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.