São Paulo, domingo, 23 de março de 2008

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A fé de Arthur C. Clarke

Ficção científica do britânico, morto na última quarta-feira, é permeada de linguagem religiosa

Divulgação
Cena de "2001: Uma Odisséia no Espaço" em que o comandante Dave Bowman (Keir Dullea) é surpreendido por HAL 9.000


EDWARD ROTHSTEIN
DO "NEW YORK TIMES"

A bsolutamente nenhum rito religioso de qualquer tipo deve ser associado com meu funeral", foram as instruções deixadas por Arthur C. Clarke, que morreu na última quarta-feira, aos 90 anos. Isso pode não surpreender a ninguém que soubesse que esse escritor de ficção científica via a religião como um sintoma da "infância" da humanidade, algo a ser superado com o crescimento.
Mas esse fervor ainda destoa, porque, quando se trata das escrituras da ficção científica moderna, e da espantosa geração de inovadores proféticos que foram seus contemporâneos -Isaac Asimov, Robert Heinlein e Ray Bradbury-, os textos de Clarke foram os mais bíblicos, os mais preparados para amplificar a razão com a convicção mística, os mais religiosos no sentido mais amplo de religião: especular sobre o princípio e os fim, e como passamos de um ao outro.
O filme que Stanley Kubrick fez a partir de "2001: Uma Odisséia no Espaço", de Clarke -em parceria com o autor- assombra não pelo seu imaginário de inteligência artificial e engenharia de estações espaciais, mas por sua evocação das origens da humanidade e sua visão de um futuro transcendente, incorporada em um feto humano solto no espaço.
Até mesmo os títulos de algumas histórias de Clarke invocam a linguagem escritural. "If I Forget Thee, Oh Earth" ("Se Eu Esquecer a Ti, Ó, Terra") fala de um menino em uma colônia lunar que é levado por seu pai para ver seu planeta-mãe, tornado inabitável pela guerra nuclear, uma experiência que inspira um sonho de retorno futuro a ser passado de geração em geração. Em "The Nine Billion Names of God" ("Os Nove Bilhões de Nomes de Deus"), monges de um convento de ares tibetanos acreditam que o grande desígnio da humanidade é escrever os 9 bilhões de permutações de letras que formam o nome secreto de Deus, um projeto assistido por representantes de uma empresa do tipo IBM, que fornecem o equipamento para que o projeto possa chegar a seu aguardado termo.
O simbolismo religioso nem sempre é benevolente, claro. Naquele que talvez seja o romance mais e perturbador de Clarke, "O Fim da Infância", uma raça alienígena de Senhores Supremos, com aparente generosidade, estabelece uma utopia na Terra, eliminando as guerras e proporcionando uma era de bonança. Mas não é por acaso que, quando os Senhores Supremos são finalmente descritos, eles têm a aparência de criaturas satânicas, com asas, chifres e cauda pontiaguda.
Qualquer que seja a atitude -e quase sempre ela é ambígua-, a religião percola o reino de Clarke. Ele solicita a tela do Gênese e, sobre ela, encena seus experimentos mentais. Toda ficção científica faz isso até certo ponto, tentando imaginar universos alternativos: e se o carbono não fosse o elemento fundamental dos seres vivos? E se existisse uma sociedade que nunca tivesse visto uma noite?
A obra de Clarke, no entanto, toca as bordas dessa moldura: tenta examinar os momentos em que as coisas começam e quando elas terminam. No conto "Rescue Party" ("Equipe de Resgate"), alienígenas chegam para salvar a Terra de uma explosão solar iminente.
Eles descobrem que os humanos, uma espécie primitiva que descobrira como usar sinais de rádio meros 200 anos atrás, já salvaram a si próprios, lançando uma frota de espaçonaves rumo às estrelas, sabendo que sua jornada levaria centenas de anos. Os salvadores ficam chocados com a ousadia. "Esta é a civilização mais jovem do Universo", um deles observa. "Quatrocentos mil anos atrás ela nem existia. Como será daqui a 1 milhão de anos?"
O conto profetiza o domínio dessa espécie -um domínio que, como Clarke nos faz sentir, nem sempre é bem-vindo.
Tal apocalipse é o feijão-com-arroz da ficção científica, mas às vezes, com Clarke, é também a comunhão, o momento de transcendência no qual algum destino se cumpre, alguma possibilidade se abre. Daí o feto em "2001".
Esse lado do trabalho de Clarke talvez seja o mais sinistro, especialmente porque suas especulações místicas vêm acompanhadas de uma capacidade ímpar de imaginar mundos eminentemente plausíveis. Mas atos de racionalidade e especulação científica são apenas o começo de suas visões. A razão pura é insuficiente. Algo mais é necessário. Para qualquer um que tenha lido Clarke nos anos 1970 e 1980, quando a exploração espacial e a pesquisa científica tinham um apelo extraordinário, sua ficção científica tornou aquela empresa ainda mais emocionante, ao colocá-la em sua maior perspectiva, na qual os feitos de um punhado de décadas se encaixam numa visão de proporções épicas, estendendo-se milênios no futuro. Não é à toa que duas gerações de cientistas foram afetadas por seu trabalho.
Apesar de sua celebrada capacidade de fazer previsões, é incerto que Clarke soubesse precisamente o que via naquele futuro. Há algo de frio em suas visões, especialmente quando ele imagina a transformação evolutiva da humanidade. Ele deixa para trás tudo aquilo que nós reconhecemos e conhecemos e não dá muitas balizas para vivermos no mundo que reconhecemos e conhecemos. Nesse sentido, seu trabalho tem pouco a ver com religião.
Mas, no quadro maior, a religião é inevitável. Clarke ficou famoso por dizer que "qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistingüível de magia". Talvez qualquer ficção científica suficientemente sofisticada, ao menos em seu caso, seja quase indistingüível de religião.


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