São Paulo, domingo, 23 de abril de 2006

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Ciência em dia

Mutantes

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

A empreitada de Armand Marie Leroi, ao escrever o livro "Mutants - On Genetic Variety and the Human Body" (Mutantes - Variedade Genética e o Corpo Humano, 431 págs.), não poderia ser mais arriscada: apresentar o fascinante mundo do desenvolvimento do organismo por meio de seus fracassos. Como quem não arrisca não petisca, algum editor brasileiro deveria lançá-lo. Leroi deu-se bem, e o editor correrá o risco de dar-se também.
Talvez não seja uma boa idéia, contudo, repetir a capa da edição de bolso da Penguin Books. Ela traz um desenho de Marc Cazotte (1757-1801), também conhecido como "Pepino", e de seu esqueleto. Um dos 5.103 espécimes da coleção teratológica de Willem Vrolik, mostra uma pessoa em que as mãos brotam dos ombros, e os pés, do quadril.
Há 60 outras gravuras e fotos em preto-e-branco no livro, a maioria fadada a desagradar o senso estético. Com humor característico, a revista "Time Out", de Londres, captou esse aspecto do livro com uma frase: "Não deve ser lido durante a gravidez". Assim que deslancha a leitura, porém, torna-se evidente o quanto há de superficial nesse senso estético.


"A beleza, diz Stendhal, é somente a promessa de alegrias. Talvez. Mas é igualmente a memória de tristezas"

O livro é uma maravilha, no sentido antigo que se dava no século 16 ao termo "Wunderkabinett" (gabinete de curiosidades da natureza), os precursores dos museus iluministas. A vantagem da pequena coleção de defeitos e monstruosidades amealhada por Leroi em cinco séculos de história é que ela vem iluminada pelas mais recentes descobertas da biologia.
Quem não se maravilharia, por exemplo, ao ler que eunucos e cantores "castrati" são mais altos que homens inteiros por não produzir os hormônios que dão o sinal para os ossos pararem de crescer? Ou ao topar com os "aleijadinhos" brasileiros estudados por Ademar Freire-Maia, portadores da doença genética aquiropodia (sem pés nem mãos), e aprender que uma malformação tão devastadora pode ser o resultado do mau funcionamento de uma delgada crista de células, ativa somente entre a quarta e a oitava semanas de vida do embrião?
Por incrível que pareça, o tema central do livro de Leroi é a beleza, não a monstruosidade. Os defeitos corporais nos atraem porque gritam o que poderia ter sido e não foi. A beleza física, porque sussurra tudo o que poderia dar errado e não deu. O exemplo de Leroi, aqui, é o hábito do macho brasileiro de exclamar "Que saúde!" quando vê passar uma mulher bonita.
Como explicar, no entanto, a maravilha da beleza? Para não correr mais riscos, fique aqui a conclusão de quem já se deu melhor a conhecer:
"Tem a ver com as imperfeições que estão ausentes: os erros da máquina que nascem das vicissitudes do útero, da infância, da maturidade e da velhice, que estão inscritos sobre todos os nossos corpos e que são tão comuns que, quando vemos alguém que parece ter escapado deles, de modo passageiro que seja, paramos para olhar com delicioso encantamento. A beleza, diz Stendhal, é somente a promessa de alegrias. Talvez. Mas é igualmente a memória de tristezas."

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos "Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br

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