São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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CIENTISTAS AMERICANOS AFIRMAM QUE O SOL NÃO NASCEU NUM AMBIENTE ISOLADO, COMO A MAIORIA DOS ASTRÔNOMOS HOJE PENSA, MAS NUMA REGIÃO TURBULENTA DO ESPAÇO, POVOADA POR ESTRELAS MACIÇAS E EXPLOSÕES DE SUPERNOVAS

O BERÇO DO SISTEMA SOLAR

Divulgação STScI
Imagem do Telescópio Espacial Hubble mostra "Os Pilares da Criação", localizados na Nebulosa da Águia, um berçário de estrelas pertencente à Via Láctea a 7.000 anos-luz da Terra

Salvador Nogueira
da Reportagem Local

O Sol e seus planetas vivem hoje no que pode ser comparado a um deserto estelar. O sistema mais próximo, Alfa Centauri, composto por três estrelas, está a longínquos 4,2 anos-luz de distância (cerca de 40 trilhões de quilômetros). Em seguida, vem a inexpressiva anã vermelha Estrela de Barnard, a seis anos-luz. Outras estrelas próximas, como Wolf 359 e Luyten 726, são desse mesmo naipe, discretas, pequenas e invisíveis a olho nu. O primeiro astro nas redondezas que realmente se dá ao respeito é Sírius -na verdade uma dupla de estrelas-, a 8,6 anos-luz daqui. Diante desse marasmo cósmico, é difícil engolir o que Jeff Hester e seus colegas, na Universidade Estadual do Arizona, estão agora sugerindo. Segundo eles, o Sol na verdade nasceu numa região do espaço parecida com a da foto aí ao lado.


Em 1995, os cientistas que observaram a Nebulosa da Águia com o Telescópio Espacial Hubble ficaram tão embasbacados com o cenário que o apelidaram de "Os Pilares da Criação". Mal sabiam eles


Para quem estava acostumado a imaginar a estrela-mãe do Sistema Solar deitada eternamente em berço esplêndido, a visão é perturbadora. Uma nebulosa suficientemente densa para possuir vários astros maciços concentrados num raio de uns poucos anos-luz e com supernovas pipocando aqui e ali não parece ser exatamente o lugar ideal para o surgimento de um sistema tão ordeiro quanto o nosso, com planetas em órbitas quase perfeitamente circulares e os gigantes gasosos postados, firmes e fortes, nas regiões mais distantes da estrela. Ainda assim, desafiando o paradigma estabelecido, Hester está convencido de que foi assim que aconteceu. "Há tantas peças que se encaixam naturalmente no lugar que isso me dá a confiança de que o cenário que estamos propondo, embora ainda não esteja completo, é um passo na direção certa." A bem da verdade, as estatísticas sempre jogaram a favor da idéia dele. "Acredita-se que cerca de 85% das estrelas de baixa massa que se formam hoje surjam em aglomerados suficientemente grandes para produzir uma ou mais estrelas maciças, então as probabilidades favorecem a hipótese de que o Sol tenha se formado numa região dessas também", diz Hester. "Mas é a análise isotópica de meteoritos que fornece as evidências específicas e convincentes de que o Sol, de fato, se formou colado a uma ou mais estrelas maciças."

Sistema leva ferro
O principal ponto de apoio para a sua hipótese veio com um estudo feito no ano passado, em que um grupo de pesquisadores identificou quantidades significativas de uma variedade atômica rara do ferro em pedaços de meteoritos. Esses rochedos espaciais, que, vira e mexe, caem na Terra, servem como um belo registro fóssil do conteúdo do Sistema Solar na época em que iniciou sua formação, cerca de 4,7 bilhões de anos atrás. Quanto ao ferro encontrado neles, nada que fosse produto da atividade local poderia explicá-lo. Entretanto, sabe-se que esses átomos são produzidos e espalhados pelo espaço por supernovas -estrelas muito maciças que esgotam seu combustível e explodem, poluindo o espaço com núcleos atômicos pesados (não só ferro, mas também oxigênio e carbono, só para citar exemplos famosos e relevantes) e semeando outros sistemas em formação com esses materiais. A partir dessas evidências, e coletando outras mais ao observar grandes berçários de estrelas, como a Nebulosa da Águia e a Nebulosa de Órion, Hester e seus colaboradores desenvolveram um modelo de quatro etapas bem definidas para o surgimento de estrelas similares ao Sol a partir de ambientes tumultuados como esses, no interior de áreas cheias de gás altamente ionizado (eletricamente carregado) denominadas regiões HII. A idéia básica foi descrita num artigo do grupo publicado na última edição da revista científica americana "Science" (www.sciencemag.org), mas a equipe pretende detalhar sua argumentação num estudo para o "Astrophysical Journal". "A real força de nosso argumento na verdade é óbvia", diz Hester. "Se você olhar onde se formam as estrelas de baixa massa, a maioria se forma perto de estrelas maciças. Se perguntar onde a maioria dos discos em volta de estrelas jovens e de baixa massa estão, a resposta é que eles repousam no interior de baixa densidade das regiões HII, muito próximos às estrelas maciças que irão virar supernovas e irão semear esses discos com material recém-sintetizado. Então, quando você estuda meteoritos e descobre que tem material misturado lá que tem as proporções certas para ter vindo de uma supernova próxima, não é um grande salto dizer, "A-há! Então é daí que nós viemos!"." Agora, se o Sol nasceu mesmo em meio a uma bagunça frenética parecida com a Nebulosa da Águia, por que hoje só vemos vazio ao redor dele? Segundo Hester, o antigo berçário solar tomou Doril há éons. "O aglomerado em que o Sol se formou simplesmente evaporou com o tempo", afirma. Faz sentido, considerando que o gás ionizado há muito deveria ter se dissipado e as estrelas de grande porte têm tempo de vida muito curto. O Sol, uma estrela amarela de massa modesta, tem hidrogênio suficiente em seu núcleo para queimar por cerca de 10 bilhões de anos. Ao final de sua vida, ele implodirá e se tornará uma anã branca, extremamente compacta. Em contrapartida, estrelas dezenas de vezes mais maciças que o Sol gastam seu hidrogênio combustível em uns poucos milhões de anos. Ao final do processo, explodem como supernovas e são deslocadas de suas órbitas originais em torno do centro da Via Láctea. Suas carcaças vagam então pelo espaço como estrelas de nêutrons ou buracos negros errantes. Outra polêmica diz respeito à estabilidade do Sistema Solar, o mais "bonitinho" dos mais de cem sistemas planetários conhecidos. Alguns desconfiam que nunca ele poderia ser o que é tendo por berço um lugar como a Nebulosa da Águia, mas Hester pensa justo o contrário. "Nossa análise é a de que um sistema planetário como o nosso sobreviveria facilmente num aglomerado perto de estrelas maciças. Já houve cálculos publicados por outros pesquisadores dizendo que não, mas esses cálculos presumem que o Sol passou 1 bilhão de anos ou mais nesse ambiente denso. A maioria dos aglomerados não vive tanto assim", afirma. "Ironicamente, pode ter acontecido de a exposição à intensa radiação no interior de uma região HII ter sido o que esculpiu o disco protoplanetário do Sol nesse formato legal, a partir do qual um Sistema Solar organizado pôde se formar."

Eterna busca
Para Hester, sua pesquisa se enquadra no contexto de uma das mais antigas indagações do homem. "A questão de nossas origens é uma das grandes questões da tradição intelectual humana. Há tantos mitos diferentes sobre a origem da Terra quanto há sociedades para inventar esses mitos", ele afirma. "Vivemos numa época memorável na história de nossa espécie -a época em que podemos responder a essas perguntas não com especulações ou inventando mitos, mas em vez disso aplicando as ferramentas da ciência. Nós agora sabemos que a Terra é o produto de processos naturais que vemos ocorrer ao nosso redor. Nosso trabalho atual é uma peça desse quebra-cabeça."
Embora se enquadre numa perspectiva de busca filosófica das origens, a pesquisa também tem forte ressonância na investigação de questões de ordem prática sobre a evolução do Sistema Solar e até mesmo a habitabilidade da Terra. "Por exemplo, a quantidade de água na Terra foi determinada pela quantidade de água nos planetesimais a partir dos quais a Terra se formou. Isso, em contrapartida, foi determinado pela quantidade de radionuclídeos de vida curta presentes no Sistema Solar primevo -o decaimento desses átomos de vida curta deve ter fornecido a energia para aquecer e diferenciar os planetesimais naquela época remota", diz Hester. "Então, pode ser bem o caso de as condições hoje vigentes na Terra serem resultado direto do fato de que estivemos perto de uma supernova há 4,5 bilhões de anos."
"Olhando além do nosso Sistema Solar, o entendimento do ambiente astrofísico em que o Sol se formou tem um impacto enorme no entendimento de quão comuns ou raros são planetas como a Terra e em que circunstâncias eles se formam. Com o que estamos aprendendo agora, antecipamos a chegada do dia em que poderemos olhar para as estatísticas de onde se formam as estrelas -quão próximas elas estão de astros maciços, o provável disparo de supernovas etc.- e prever qual a fração esperada de planetas tipo Terra."
Com tantas implicações, Hester vê um futuro glorioso para essa linha de pesquisa. "Um dos aspectos mais interessantes do trabalho atual para mim é o de que estamos ajudando a derrubar divisões tradicionais entre a astrofísica e a ciência planetária", diz. "Você realmente não pode entender a história do Sistema Solar sem entender como o ambiente astrofísico circundante afetou esse processo. E também não pode entender como estrelas de baixa massa como o Sol se formam sem usar as pistas encontradas em estudos do Sistema Solar. Nossa esperança é obter a atenção dos dois lados da fronteira."


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