São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

Próximo Texto | Índice

+ ciência

Polêmica sobre a descoberta de contaminação genética em milho no México revela os bastidores nem sempre isentos das publicações científicas

OS GRÃOS DA DISCÓRDIA

Reuters - 29.set.2001
Ativistas do Greenpeace protestam em frente ao Ministério da Agricultura do México contra importação de milho transgênico dos Estados Unidos


Fred Pearce
Da "New Scientist"

A novela começou em setembro de 2001. O ministério do ambiente do México anunciou que DNA de milho geneticamente modificado havia sido encontrado em variedades nativas, plantadas em pequenas propriedades.
Os resultados, claro, foram empunhados pelos ativistas de oposição às lavouras transgênicas. E, em novembro, eles ganharam mais munição quando os achados foram publicados na prestigiosa revista "Nature". Então, em abril deste ano, as coisas sofreram uma reviravolta. Num ato sem precedentes, a "Nature" declarou que lamentava a publicação do artigo original e soltou duas cartas que apontavam erros fatais na pesquisa.
O passo atrás gerou ainda mais cobertura da imprensa do que a descoberta original. Era a primeira vez que a "Nature" renegava um artigo, contrariando seus autores e seus revisores científicos. Alguns suspeitam de jogo sujo, afirmando que representantes da indústria da biotecnologia orquestraram uma campanha de cartas e petições contra o estudo original. Mas críticos do estudo da Universidade da Califórnia em Berkeley, onde trabalharam todos os protagonistas principais da saga, podem não ter precisado de nenhum estímulo de fora.
Os autores da pesquisa, o estudante de pós-graduação em ciências ambientais David Quist e seu professor, o biólogo mexicano Ignacio Chapela, já eram figuras detestadas no campus de Berkeley. Em 1998, eles fizeram uma campanha mal-sucedida para impedir que a universidade assinasse um pacto extraordinário com a gigante biotecnológica suíça Novartis. O acordo, firmado em meio a protestos estudantis e tortas voando por todo lado, deu à Novartis o direito de se servir da melhor pesquisa em plantas para desenvolvimento de produtos em troca de US$ 50 milhões. Mas, enquanto os manifestantes o vêem como algo que compromete a liberdade acadêmica, muitas pessoas no Departamento de Biologia Microbiana e de Plantas devem seus empregos ao tratado com a empresa, hoje chamada de Syngenta.
Dois anos mais tarde, na noite de 11 de outubro de 2000, ativistas ambientais destruíram milho transgênico que estava sendo cultivado por alunos de Mike Freeling, que é membro do departamento. O grupo disse a um jornal local que havia testado o milho para ter certeza de que ele era geneticamente modificado.
Os pesquisadores, furiosos, suspeitaram que o ato tivesse origens dentro do departamento, e apontaram Quist como culpado. "Pouco antes do vandalismo, Quist pediu "primers" [sequências de DNA construídas pelos cientistas" de alguns dos pesquisadores de milho do meu departamento que pudessem ser usadas para identificar transgênicos no campo", afirmou Steven Lindow, um professor sênior do departamento. Seus colegas "ficaram preocupados e ainda mais desconfiados depois do ato", conta o pesquisador.
Uma semana depois da destruição dos plantios, Lindow conversou com o orientador de Quist, Chapela, sobre as acusações. Hoje Lindow diz que aceitou imediatamente que Quist era inocente. Mas Quist afirma que as acusações continuam e que elas "provocaram um dano irreparável na minha credibilidade acadêmica".
Na época do vandalismo no campo experimental transgênico, Quist estava no Estado mexicano de Oaxaca, coletando amostras de milho das lavouras. Quando a pesquisa baseada nessas amostras ganhou o noticiário, um ano mais tarde, ela ameaçou mais as carreiras dos biotecnólogos que as botas dos manifestantes.
Quist e Chapela primeiro usaram PCR, a técnica-padrão de amplificação de DNA, para detectar sequências inseridas no milho Bt produzido nos EUA. Esse método pode gerar resultados positivos falsos, admite Quist. Mas a dupla diz que os resultados de seus experimentos mostram, "além de qualquer dúvida razoável", que as tais sequências estão presentes em amostras das variedades nativas vindas de regiões remotas do México.

Genes espalhados
Quist e Chapela, então, usaram uma técnica chamada PCR reversa para descobrir a posição precisa das sequências transgênicas. O resultado pareceu mostrar que o DNA alienígena havia se fragmentado e se espalhado pelo genoma do milho -uma conclusão que disparou uma histeria entre os cientistas. Os autores ainda alimentam a disputa. "Isso sugere que o DNA transgênico pode se mover pelo genoma, causando uma gama de efeitos imprevisíveis, da interrupção das funções normais até a modificação de produtos expressos que viram agentes tóxicos", diz Quist. As duas cartas críticas publicadas em abril pela "Nature" atacaram essa segunda descoberta. E Quist e Chapela concordaram que havia falhas quando, em carta publicada na mesma edição da revista, eles disseram: "Nós admitimos que a asserção de nossos críticos sobre a falsa identificação das sequências... é válida." Em circunstâncias menos carregadas, a retratação parcial bastaria para satisfazer a ambos os lados. Mas a "Nature" solicitou aos autores que retirassem o artigo inteiro, e eles se recusaram. Então a revista publicou a própria reprovação sem precedentes, na mesma edição das cartas. Ela dizia que "à luz de diversos pareceres recebidos... a evidência disponível não é suficiente para justificar a publicação do artigo original". Quist e Chapela apontam que, mesmo que falhas técnicas tenham surgido, o artigo foi aprovado por três revisores anônimos. Deve ter tido algum mérito. E, quando ele e as críticas foram submetidos a três outros revisores, dois deles notaram especificamente que nenhum dos comentários negava a conclusão de que há milho transgênico no México. "Nenhuma das cartas publicadas na "Nature" questionou a descoberta", afirma Quist. A "Nature" não respondeu diretamente às questões da "New Scientist" sobre por que não aceitou a retratação parcial dos autores. "A "Nature" nunca disse que as conclusões do artigo estão erradas", é tudo o que diz o editor da revista, Philip Campbell. "O que nós dissemos foi que elas não eram convincentes com base na evidência que publicamos." Ele nega que uma campanha contra Quist e Chapela tenha influenciado sua decisão de exigir a retirada do artigo -e de renegá-lo depois.

Pressão anônima
Mas que houve uma campanha, isso houve. Exigências de que o artigo fosse desmentido apareceram em fóruns na internet desde o dia da publicação e continuaram com veemência crescente. No entanto, dois dos primeiros, mais persistentes e aparentemente qualificados críticos na rede, Mary Murphy e Andura Smetacek, parecem não ser pessoas reais. Um ativista antitransgênicos britânico, Jonathan Matthews, afirma ter traçado a origem de suas identidades eletrônicas e chegado a computadores do escritório do Grupo Bivings, uma empresa de assessoria de imprensa que tem a Monsanto como cliente. A Bivings inicialmente negou, mas depois admitiu que um dos e-mails tinha vindo de um funcionário ou cliente da empresa.
Mas o que mais faz levantar as sobrancelhas é a identidade dos cientistas cujas cartas atacando o artigo de Quist e Chapela foram publicadas pela "Nature". "Os antagonistas que assinaram as cartas são todos diretamente ligados ao escândalo político local [de Berkeley"", afirma Ignacio Chapela. Uma delas foi assinada por Freeling e Nick Kaplinsky, que também é uma figura antiga do mesmo departamento. A outra foi escrita por Matthew Metz, um ex-microbiologista de Berkeley que apoiou explicitamente a parceria com a Novartis, e Johannes Futterer, um jovem pesquisador suíço cujo chefe, Wilhelm Grusseim, esteve em Berkeley quatro anos atrás e foi amplamente conhecido como "o homem que trouxe a Novartis para Berkeley".
Quist e Chapela crêem que as animosidades criadas pelo episódio devem ter tido um papel na confusão sobre seu artigo. Kaplinsky nega. "A questão é estritamente científica. Quist e Chapela publicaram ciência de má qualidade e deveriam ter tomado a atitude mais honrosa: desmentir o trabalho e pedir desculpas."
Campbell diz que não tinha noção das acusações contra Quist no caso do vandalismo quando aceitou as cartas. Mas ele afirma que isso não teria influenciado sua decisão de publicá-las. Nem a "Nature" nem Campbell são bichos de estimação da indústria biotecnológica. O próprio Campbell escreveu um editorial hostil sobre o acordo com a Novartis. Mas Quist insiste que a ação da revista foi motivada por pressões políticas.
Quem quer que tenha razão, o episódio revela uma ruptura alarmante no discurso científico. Na sequência do caso, Campbell escreveu que só pode ter sido obra da lei de Murphy o fato de o embaraçoso passo atrás da revista ter se dado "em relação a uma das mais debatidas tecnologias do nosso tempo". Teme-se que o caso tenha posto o sistema de revisão à prova -e que ele não tenha respondido.
O espectro de atores ocultos manipulando eventos é particularmente preocupante. No seu descrédito do artigo, a "Nature" pediu aos leitores que se concentrassem na ciência por trás da disputa. Mas falhou em alertá-los sobre as disputas privadas por trás das cartas públicas. Tampouco revelou a identidade e afiliação dos cinco revisores que apoiaram o estudo, ou do sexto que aparentemente persuadiu a revista a se retratar.
Também fora do alcance da vista estão os indivíduos por trás de Mary Murphy e Andura Smetacek, para não falar das pessoas que destruíram o milho de Freeling dois anos atrás. Estranhamente, as sombras escuras são atiradas pelo brilho berrante da publicidade.



Próximo Texto: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: O 'porquê' e o 'como'
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.