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+ Marcelo Leite
O rádio de Darwin
A obra constrói
uma fantasia barroca
sobre os retrovírus
Faz pelo menos duas décadas que
obras batizadas segundo a fórmula "O X de Y", como o título
que encima esta coluna, pululam nas
prateleiras das livrarias. Um dos mais
antigos que vêm à memória é "O Papagaio de Flaubert", de Julian Barnes,
genial. Depois vieram "O Pêndulo de
Foucault" e uma enfiada de títulos
que desgastaram o expediente até o
ponto em que algumas pessoas passaram a evitar livros com tais nomes.
Bem, esta é primeira concessão que
você terá de fazer a Greg Bear, se for fã
de ficção científica e também de biologia. Seu "Darwin's Radio" (O Rádio de
Darwin; Ballantine Books, 1999, US$
7,50 na edição de bolso) merece ser lido, apesar do título. A segunda será repetir a dose de condescendência para
enfrentar também "Darwin's Children" (Os Filhos de Darwin; mesmos
editora e preço), seqüência lançada
quatro anos depois.
A terceira concessão implica encarar os dois catataus -total de mais de
mil páginas- em inglês. Não há, aparentemente, traduções disponíveis
das obras para o português. Nem mesmo do óbvio "Star Wars - Rogue Planet Episode 1". E olhe que Bear já escreveu 25 livros e ganhou vários prêmios Hugo e Nebula de ficção científica. Coisas do mercado editorial.
A quarta concessão vem quase naturalmente para consumidores desse
gênero, mas cabe o alerta para recém-chegados: trata-se de literatura de entretenimento. Quem está em busca de
vôos mais altos sobre o impacto sociocultural das biotecnologias deve socorrer-se com autores como um Kazuo Ishiguro ("Não me Abandone Jamais") ou um Ian McEwan ("Sábado"), por exemplo.
A quinta e última concessão aos
dois romances de Bear é se preparar
para aprender alguma biologia, em especial biologia molecular. O primeiro
volume tem até seis páginas de glossário, de "aminoácido" a "zigoto". O termo-chave para a trama, no entanto, é
"retrovírus endógeno".
Bear construiu um edifício barroco
de fantasia evolucionista sobre o alicerce vacilante dessas seqüências
contrabandeadas de DNA que se ocultam no genoma. São como fósseis de
vírus adormecidos, que dão início ao
enredo ao despertar misteriosa e sincronizadamente em toda a espécie
humana. Sua libertação provoca uma
onda simultânea de gravidezes imaculadas de fetos femininos intermediários, que são abortados depois de deixar seus próprios filhos implantados
nos úteros das mães, que darão assim
à luz os próprios netos.
O vírus recebe o nome de Sheva, e a
geração de "shevitas" que insemina
nos humanos é uma nova espécie hominídea. Gente que aprende a falar
ainda na barriga da mãe e tem línguas
subdivididas, que lhes permitem pronunciar mais de um enunciado ao
mesmo tempo. Além disso, comunicam-se por feromônios e são capazes
de afetar o comportamento da velha
guarda humana por meio deles. Não é
preciso dizer que passam a ser perseguidos e encarcerados como animais
-ou terroristas da pior espécie- pelo
governo americano.
Pode não ser factível, mas é bem inventado. Bear fez a lição de casa e fala
aos borbotões pela boca da protagonista Kaye Lang, uma bióloga que havia teorizado sobre o papel evolutivo
dos retrovírus endógenos -mensagens de um rádio darwiniano, por assim dizer- muito antes do surto de
especiação. Ela, no entanto, abandona
a trilha quase certa até um Prêmio
Nobel para parir um dos filhos de Darwin, Stella Nova.
A partir daí dá quase tudo errado,
mas Bear bem faz por merecer a derradeira concessão de não se contar
aqui o final.
MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos "Amazônia, Terra com
Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e
responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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