São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997.



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MICRO/MACRO
O reducionismo na ciência e suas limitações

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Existe uma escola de pensamento científico, a reducionista, que acredita ser possível reduzir (daí o nome) o estudo de qualquer sistema ao de seus componentes básicos. A matéria inanimada é composta por moléculas, estas por átomos, átomos por elétrons, prótons, nêutrons etc. No nível biológico, organismos vivos são compostos por órgãos, que são compostos por células, estas por moléculas orgânicas, também compostas por átomos.
Os reducionistas mais radicais afirmam que tudo pode ser compreendido a partir das leis da física; quando tivermos um conhecimento completo das leis que regem o comportamento da matéria no seu nível mais fundamental, poderemos extrapolar esse conhecimento a sistemas cada vez mais complexos. Na verdade, estou exagerando um pouco as idéias reducionistas com o intuito de instigar o leitor a refletir sobre a seguinte questão: até que ponto essa idéia de "reduzir para entender" é útil?
A grande expansão tecnológica e industrial que dominou e domina a história desse século é produto direto da aplicação de idéias reducionistas. Televisão, computadores, fibras óticas, laser e energia nuclear, entre outras aplicações da ciência, vêm da mecânica quântica, a área da física dedicada ao estudo do comportamento de sistemas atômicos e subatômicos.
Na prática, a mecânica quântica tem suas limitações. A teoria descreve muito bem o comportamento do átomo mais simples, o átomo do elemento hidrogênio, que contém apenas um elétron e um próton. É possível também obter soluções satisfatórias para o próximo átomo na lista, o átomo de hélio com seus dois prótons. Mas o estudo de átomos mais complexos requer aproximações cada vez mais drásticas e menos eficientes.
No próximo nível de complexidade na organização da matéria, encontramos as moléculas, que são coleções de átomos. Quantas moléculas podem existir? Usando apenas 101 átomos (outros foram sintetizados recentemente), e descontando os oito gases nobres, pois estes não se combinam com outros átomos, temos 95 átomos para formar moléculas. Se uma molécula tem dois átomos, existem 95 possibilidades para o primeiro e 95 para o segundo, ou seja, 95 x 95 = 952 = 9.025 moléculas diferentes. Para moléculas com n átomos, temos 95n possibilidades.
Em realidade o número é menor, porque nem todos os átomos forjam ligações entre si. Levando em conta essa limitação (conhecida como "valência"), o número de moléculas com n átomos é cerca de 95n/2.
Por exemplo, se n=112, o número de moléculas é 9556, que é aproximadamente igual a 10110 (o algarismo 1 seguido de 110 zeros)! O físico Walter Elsasser cunhou o termo "imenso" para descrever números maiores do que esse. Imagine que você tenha que compilar uma lista contendo 10110 moléculas. Elsasser mostrou que para armazenarmos a informação dessa lista, precisaríamos de um computador cuja memória utilizaria todos os átomos de hidrogênio do Universo.
Essa discussão tem consequências importantes. Uma delas é que o trabalho do químico jamais se esgotará. Como o número de moléculas possíveis é imenso, sempre existirão moléculas desconhecidas. Ao aumentarmos o nível de complexidade das estruturas estudadas, fica ainda mais fácil obtermos um número "imenso" de proteínas, de combinações genéticas, de tipos de célula ou de estados mentais.
É impossível prever o comportamento de estruturas complexas em química molecular ou bioquímica a partir de um tratamento reducionista baseado nas leis da física. A passagem de um nível a outro na organização estrutural da matéria não é contínua. Seu estudo requer novas leis, novos tipos de tratamento. A Natureza é "imensamente" criativa.


Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (Estados Unidos), e autor do livro "A Dança do Universo".



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