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"Poucos ouvem as más notícias da ciência"
Para a geóloga Lisa Grant, que trabalha na Califórnia, é difícil fazer as pessoas aceitarem os riscos de um desastre natural
Para cientista, prioridade na recomposição arquitetônica do Haiti deve ser segurança na estrutura dos prédios com funções estratégicas
Alan Marques-20.jan.2010/Folha Imagem
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Rachadura causada pelo terremoto no Haiti
RICARDO MIOTO
DA REPORTAGEM LOCAL
As ciências da Terra têm conseguido progredir muito nas últimas décadas, mas a sociedade
ainda não sabe aproveitar o conhecimento que elas produzem, diz uma das maiores especialistas em terremotos nos
EUA. Lisa Grant, da Universidade da Califórnia em Irvine,
acaba de publicar na revista
"Science" um trabalho estimando a magnitude do grande
tremor que a Califórnia está
gestando, mas diz que é difícil
conseguir se fazer ouvida.
"Estou muito triste com a
tragédia do Haiti, mas não estou surpresa", diz a cientista.
Segundo ela, não dá para saber
quando a ciência será capaz de
prever a data exata de um grande terremoto. Mas já se sabe
com boa precisão onde eles serão e qual sua probabilidade.
Ainda assim, os dados produzidos por sismólogos são largamente ignorados na maior parte do mundo. "No Haiti, eles
não foram bem utilizados", diz.
"A ciência evoluiu, mas o jeito
com que a sociedade lida com
ela não melhorou."
Leia abaixo entrevista que a
cientista concedeu à Folha.
FOLHA - O terremoto é o pior desastre natural? Qual a sra. escolheria
enfrentar entre um furacão como o
Katrina e um grande terremoto?
GRANT - O furacão. Nele você
perde a infraestrutura, mas
tem a chance de correr. No terremoto, não há aviso prévio. Eu
não sei se um dia conseguiremos saber precisamente quando um terremoto vai acontecer.
Eu estou tentando. É difícil.
Hoje, o máximo que podemos
fazer é dizer "este lugar é perigoso", mas com o tempo as pessoas esquecem e acabam morrendo soterradas.
FOLHA - As pessoas esquecem?
GRANT - As pessoas não gostam
de pensar nisso, porque é assustador. Acham que, se não
pensarem, não vai acontecer.
Então não se preparam, nem
sequer estocam água em casa.
FOLHA - Ainda que alguns geólogos gostem de dizer que, na Califórnia, um grande terremoto já está
"no décimo mês de gestação"?
GRANT - É uma boa comparação: você não pode saber exatamente quando um bebê vai
nascer, mas pode dizer quando
está perto de acontecer. É o caso aqui da Califórnia, com o
"big one", tremor muito maior
do que o que ocorreu no Haiti.
E o que determina o impacto de
um terremoto é o quanto você
se para se prepara para ele.
FOLHA - A sra. acha que ainda verá
um grande terremoto na Califórnia?
GRANT - Há uma probabilidade
grande. Por isso estou preocupada. E veja... na minha casa eu
tenho 50 galões [quase 200 litros] de água estocada. Estou
fazendo tudo para ajudar minha comunidade a se preparar.
Falei com o reitor da minha
universidade, com o diretor da
escola dos meus filhos. É algo
que não sai da minha cabeça.
FOLHA - Mas a senhora não está
tranquila por estar preparada?
GRANT - Não, porque posso não
estar em casa! E se acontecesse
agora? Meus filhos estão na escola. Ninguém está em casa a
não ser os cães, e eles não sabem como abrir as garrafas d'água. Ontem eu estive com algumas amigas. Estávamos conversando. Nenhuma estoca
água; estão muito ocupadas para se preocupar com isso. E me
ouviram falar disso por anos!
FOLHA - As pessoas não a encaram
como uma "sra. apocalipse"?
GRANT - Sim, até alguns familiares... Você deve conhecer
Cassandra, da mitologia grega
[para quem Apolo concedeu o
dom de prever acontecimentos
com a condição de que ninguém acreditasse nela]. Não tenho escolha. Vi os dados, sou
especialista em terremotos.
Nunca me perdoaria se algo
acontecesse e eu não tivesse
feito de tudo para alertar as
pessoas. Uma descoberta do
nosso último trabalho, na revista "Science", é que se você
olhar para os últimos cinco
grandes terremotos da história
da Califórnia, perceberá que as
condições de hoje em dia são
parecidas. Meu irmão é pastor
em uma igreja. Ele prega o
evangelho, e eu prego a preparação para o terremoto. [Risos.]
FOLHA - A geologia é uma área de
pesquisa popular na Califórnia, disputada por muitos alunos?
GRANT - Não muitos, na verdade. Trabalhamos sempre dando
más notícias. As pessoas não
querem isso. Sempre tive alunos para ver minhas aulas, mas
o interesse em fazer doutorado
era bem menor. Mas, com o
Haiti e com o tsunami de 2004,
o mundo começa a reconhecer
que o assunto é importante.
FOLHA - Por que a sra. decidiu entrar no campo das "más notícias'?
GRANT - Por acidente. Eu queria estudar poluição da água.
Mas no meu primeiro dia no
doutorado, tivemos um terremoto no campus. Com o tempo,
vi que nenhum californiano vai
morrer bebendo água poluída.
Mas temos um risco enorme de
terremotos. Então, eu mudei.
FOLHA - Sabemos mais hoje sobre
terremotos do que naquela época?
GRANT - Sim. Um monte de lugares perigosos foram identificados, inclusive no Haiti. Mas
os dados não foram bem utilizados. Estou muito triste com a
tragédia naquele país, mas não
estou surpresa. Muitos cientistas já conheciam o risco. Poucos minutos após o terremoto,
antes de qualquer notícia aparecer na imprensa, um dos
meus colegas parou no meu escritório para me contar. Ele
disse: "Parte meu coração pensar nesta tragédia. Vai ser terrível". A ciência evoluiu, mas o
jeito com que a sociedade lida
com ela não melhorou.
FOLHA - Como assim?
GRANT - Por exemplo, construir prédios resistentes é mais
caro. Então, as pessoas ignoram o risco na maior parte do
mundo onde há terremotos.
Mas a função básica de uma
construção é ficar em pé. Não é
parecer bonita! Já debati isso
com arquitetos. Na Califórnia
temos leis para tornar as construções seguras, mas não é assim na maior parte do mundo.
FOLHA - Mas o Haiti não é pobre
demais para se importar com isso?
GRANT - Sim, muito pobre. Mas
algumas das construções mais
críticas deveriam ser seguras. A
sede da ONU, o palácio presidencial, os hospitais! Eles vão
ter de começar tudo de novo.
Seria uma tragédia reconstruir
tudo igual, colocar muita gente
em áreas de risco, porque esse
episódio [o tremor] vai se repetir, mesmo que demore mais de
cem anos. É bom estar preparado. Em 1992, tivemos na Califórnia um terremoto similar ao
do Haiti. Houve feridos, mas
ninguém morreu, porque as
construções ficaram em pé.
FOLHA - Mas o furacão Katrina não
mostrou que mesmo os EUA falham
em se preparar bem?
GRANT - Sim. New Orleans estava em todos os livros de desastres naturais! Eu sempre ensinei que era um lugar com um
desastre esperando para acontecer. Perto do nível do mar, de
um grande rio, de um lago.
Acho que os EUA aprenderam
com ele. Espero que, na próxima, a resposta seja mais rápida.
FOLHA - Ir embora da Califórnia já
passou pela sua cabeça?
GRANT - Algumas vezes, mas
aqui não vai ser tão terrível
quanto no Haiti. O que me
preocupa são os meus filhos,
porque tomo as decisões por
eles. O mais novo tem quatro
anos. E se um se machucar? Como eu me sentiria? É difícil.
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