São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 2010

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Segredos de caçador

Zonas escuras da vida de Francis Crick emergem em biografia do cientista por Robert Olby

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Arrogante, invasivo, megalômano... Quem já sofreu os efeitos da legendária capacidade de análise de Francis Crick (1916-2004) poderia enfileirar muitos adjetivos depreciativos para qualificar o físico britânico que descobriu a estrutura molecular do DNA em 1953, com o americano James Watson. Poucos o fizeram, porém. O brilho irradiado por esse gigante da biologia sempre ofuscou as áreas de sombra em sua vida e sua personalidade.
A primeira coisa a apontar na competente biografia intelectual por Robert Olby é que as zonas escuras estão lá. Autor de um clássico sobre a biologia molecular, "A Trilha para a Dupla Hélice" (1974, nunca traduzido para o português), o historiador da Universidade de Pittsburgh teve acesso ao acervo pessoal e ao próprio Crick em seus últimos anos de vida, mas essa proximidade não produziu uma mera hagiografia.
Até as escapadas sexuais do homem são tratadas no livro, mas no devido lugar: ao final do volume, sem destaque, porque afinal pesaram pouco na carreira e na obra de Crick. Muito mais páginas são dedicadas aos vários becos sem saída em que ele se meteu na ciência, dos quais saiu com alguma elegância. Como pesquisador, Crick sempre arriscou muito, errou muito e acertou muito.
Este é o retrato que sobressai do livro: um intelecto privilegiado aplicado à teoria e à busca de princípios gerais norteadores e explicações abrangentes, com grande capacidade de coordenar resultados díspares da pesquisa experimental, sem os quais a teoria resvala para a arbitrariedade. Não raro Crick achou que poderia explicar os dados obtidos na bancada de experimentação melhor do que os próprios experimentadores. Colecionou atritos por isso.
Na biologia molecular, Crick principiou trombando com seu chefe, Lawrence Bragg, em 1951. Detentor de um Nobel (1915) por ter lançado as bases da cristalografia por raios X, Bragg tolerou durante meses aquele doutorando tardio pontificando sobre os limites da técnica mais popular no Laboratório Cavendish de Cambridge. O emprego de Crick ficou por um fio. Foi salvo pela estrutura correta do DNA, em 1953.

Esforço de guerra
Na realidade, Crick já se destacara desde a graduação em física pelo University College de Londres e se provara útil para o Almirantado britânico durante a Segunda Guerra. Os mais de cem circuitos projetados por ele para minas acústicas e magnéticas ajudaram a afundar 1.050 navios alemães e italianos. Seu entusiasmo, assim como a capacidade de enfrentar grandes massas de dados e campos de estudo pouco familiares (como hidrodinâmica), deixou boas lembranças por lá.
Em lugar da carreira óbvia como físico voltado para aplicações militares ou industriais, Crick decidiu dar a primeira grande reviravolta em seu percurso. Queria dedicar-se a um dos maiores "segredos da vida", a hereditariedade. Para isso, teria de aprender biologia desde a estaca zero, apesar de já contar mais de 30 anos de idade, coisa que não o intimidou.
Depois de resolver a estrutura do DNA, Crick deu outras contribuições fundamentais para decifrar o código genético (como o DNA especifica determinada proteína). Foi o líder do esforço de mais de uma década, para o qual forneceu duas proposições teóricas que se revelariam acertadas: as hipóteses da sequência, relacionando bases do DNA com aminoácidos de proteínas, e do adaptador, uma molécula mediadora entre DNA e aminoácidos (identificada depois como o RNA de transferência).
Ainda na biologia molecular, Crick teve lá suas mancadas de teórico entusiasmado. Olby narra uma bastante penosa, ocorrida em 1971. Com o código genético decifrado, todos queriam saber como o DNA se compactava nos cromossomos e qual o papel de proteínas misteriosas, as histonas.
Crick acreditou ter resolvido o problema ao propor uma complicada estrutura em que o DNA codificante se alternava no cromossomo com glóbulos não codificantes e em que as histonas ficavam para fora. Chegou a publicar um longo artigo no prestigiado periódico científico "Nature", o mesmo em que saíra seu trabalho de 1953 com Watson. Poucos meses depois, um estudante do laboratório, Roger Kornberg (Nobel de Química, 2006), mostrou que o DNA se enrolava nas histonas, como se fossem carretéis de linha.

Eugenia e panspermia
Crick ainda erraria muito pela vida, sobretudo quando se aventurou além da biologia molecular -como ao defender noções eugenistas e a ideia de que a vida foi enviada à Terra por seres inteligentes. Olby reproduz sem comentário a afirmação de Crick, décadas depois, de que não acreditava realmente na chamada "panspermia dirigida", mas isso não impediu o físico de participar de um simpósio sobre o tema na Armênia soviética, em 1971.
Aos 60 anos, Crick abandonou de vez a biologia molecular e avançou sobre a neurociência, depois de deixar o Reino Unido pela ensolarada Califórnia. Morreu em 2004 sem ter resolvido o outro grande segredo da vida que o fascinava, a sede da consciência no cérebro.


LIVRO - "Francis Crick - Hunter of Life's Secrets" de Robert Olby. Cold Spring Harbor Laboratory Press, 538 págs. US$ 45


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