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Segredos de caçador
Zonas escuras
da vida de
Francis Crick
emergem em
biografia do
cientista por
Robert Olby
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
Arrogante, invasivo,
megalômano...
Quem já sofreu os
efeitos da legendária capacidade de
análise de Francis Crick (1916-2004) poderia enfileirar muitos adjetivos depreciativos para qualificar o físico britânico
que descobriu a estrutura molecular do DNA em 1953, com o
americano James Watson.
Poucos o fizeram, porém. O
brilho irradiado por esse gigante da biologia sempre ofuscou
as áreas de sombra em sua vida
e sua personalidade.
A primeira coisa a apontar na
competente biografia intelectual por Robert Olby é que as
zonas escuras estão lá. Autor
de um clássico sobre a biologia
molecular, "A Trilha para a Dupla Hélice" (1974, nunca traduzido para o português), o historiador da Universidade de
Pittsburgh teve acesso ao acervo pessoal e ao próprio Crick
em seus últimos anos de vida,
mas essa proximidade não produziu uma mera hagiografia.
Até as escapadas sexuais do
homem são tratadas no livro,
mas no devido lugar: ao final do
volume, sem destaque, porque
afinal pesaram pouco na carreira e na obra de Crick. Muito
mais páginas são dedicadas aos
vários becos sem saída em que
ele se meteu na ciência, dos
quais saiu com alguma elegância. Como pesquisador, Crick
sempre arriscou muito, errou
muito e acertou muito.
Este é o retrato que sobressai
do livro: um intelecto privilegiado aplicado à teoria e à busca de princípios gerais norteadores e explicações abrangentes, com grande capacidade de
coordenar resultados díspares
da pesquisa experimental, sem
os quais a teoria resvala para a
arbitrariedade. Não raro Crick
achou que poderia explicar os
dados obtidos na bancada de
experimentação melhor do que
os próprios experimentadores.
Colecionou atritos por isso.
Na biologia molecular, Crick
principiou trombando com seu
chefe, Lawrence Bragg, em
1951. Detentor de um Nobel
(1915) por ter lançado as bases
da cristalografia por raios X,
Bragg tolerou durante meses
aquele doutorando tardio pontificando sobre os limites da
técnica mais popular no Laboratório Cavendish de Cambridge. O emprego de Crick ficou
por um fio. Foi salvo pela estrutura correta do DNA, em 1953.
Esforço de guerra
Na realidade, Crick já se destacara desde a graduação em física pelo University College de
Londres e se provara útil para o
Almirantado britânico durante
a Segunda Guerra. Os mais de
cem circuitos projetados por
ele para minas acústicas e magnéticas ajudaram a afundar
1.050 navios alemães e italianos. Seu entusiasmo, assim como a capacidade de enfrentar
grandes massas de dados e
campos de estudo pouco familiares (como hidrodinâmica),
deixou boas lembranças por lá.
Em lugar da carreira óbvia
como físico voltado para aplicações militares ou industriais,
Crick decidiu dar a primeira
grande reviravolta em seu percurso. Queria dedicar-se a um
dos maiores "segredos da vida",
a hereditariedade. Para isso, teria de aprender biologia desde a
estaca zero, apesar de já contar
mais de 30 anos de idade, coisa
que não o intimidou.
Depois de resolver a estrutura do DNA, Crick deu outras
contribuições fundamentais
para decifrar o código genético
(como o DNA especifica determinada proteína). Foi o líder do
esforço de mais de uma década,
para o qual forneceu duas proposições teóricas que se revelariam acertadas: as hipóteses da
sequência, relacionando bases
do DNA com aminoácidos de
proteínas, e do adaptador, uma
molécula mediadora entre
DNA e aminoácidos (identificada depois como o RNA de
transferência).
Ainda na biologia molecular,
Crick teve lá suas mancadas de
teórico entusiasmado. Olby
narra uma bastante penosa,
ocorrida em 1971. Com o código
genético decifrado, todos queriam saber como o DNA se
compactava nos cromossomos
e qual o papel de proteínas misteriosas, as histonas.
Crick acreditou ter resolvido
o problema ao propor uma
complicada estrutura em que o
DNA codificante se alternava
no cromossomo com glóbulos
não codificantes e em que as
histonas ficavam para fora.
Chegou a publicar um longo artigo no prestigiado periódico
científico "Nature", o mesmo
em que saíra seu trabalho de
1953 com Watson. Poucos meses depois, um estudante do laboratório, Roger Kornberg
(Nobel de Química, 2006),
mostrou que o DNA se enrolava
nas histonas, como se fossem
carretéis de linha.
Eugenia e panspermia
Crick ainda erraria muito pela vida, sobretudo quando se
aventurou além da biologia
molecular -como ao defender
noções eugenistas e a ideia de
que a vida foi enviada à Terra
por seres inteligentes. Olby reproduz sem comentário a afirmação de Crick, décadas depois, de que não acreditava
realmente na chamada "panspermia dirigida", mas isso não
impediu o físico de participar
de um simpósio sobre o tema
na Armênia soviética, em 1971.
Aos 60 anos, Crick abandonou de vez a biologia molecular
e avançou sobre a neurociência, depois de deixar o Reino
Unido pela ensolarada Califórnia. Morreu em 2004 sem ter
resolvido o outro grande segredo da vida que o fascinava, a sede da consciência no cérebro.
LIVRO - "Francis Crick - Hunter of
Life's Secrets"
de Robert Olby. Cold Spring Harbor
Laboratory Press, 538 págs. US$ 45
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