São Paulo, sexta-feira, 24 de maio de 2002

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ANTROPOLOGIA

Ferramentas na Costa do Marfim formam sítio de um século e lembram os primeiros instrumentos humanos

Chimpanzé deixa registro arqueológico

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Na Costa do Marfim, no meio da selva equatorial africana, pesquisadores acabam de trazer à luz um grande sítio arqueológico, com centenas de instrumentos de pedra e evidências de uma complexa atividade de subsistência, baseada na coleta e processamento de nozes. Detalhe: o "povo" que deixou esse registro foram chimpanzés. Há exatos 110 anos.
A escavação é a primeira a revelar um registro arqueológico de criaturas que não são humanos nem hominídeos (os ancestrais da humanidade). E pode dar pistas para interpretar alguns dos mais antigos instrumentos da linhagem do Homo sapiens, que são parecidos com as ferramentas encontradas na Costa do Marfim.
"Ninguém nunca observou o comportamento exato que produziu as ferramentas mais antigas dos hominídeos", disse à Folha Melissa Panger, da Universidade George Washington, nos EUA, autora do estudo que sai hoje na revista científica "Science" (www.sciencemag.org).
"Por isso é difícil interpretá-las. Mas algumas das ferramentas desse sítio são muito parecidas com as da cultura olduvaniana [a mais antiga técnica de produção de ferramentas por hominídeos, com cerca de 2,5 milhões de anos"", afirma Panger. Isso indica que, se alguém estiver coçando a cabeça para imaginar que diabos faziam esses pioneiros do artesanato, a resposta pode ser bem simples: quebrando nozes.
A coisa, claro, funciona no outro sentido: achar sítios parecidos com os dos chimpanzés, mas com alguns milhões de anos de idade, poderia recuar a data do uso de ferramentas na família humana. "É difícil dizer quanto, mas é possível que isso chegue até o ponto de divergência evolutiva entre humanos e chimpanzés, há 6 ou 7 milhões de anos", diz Panger.

Instrumentos de precisão
É melhor dizer o uso, e não a fabricação de ferramentas, porque os chimpanzés no Parque Nacional Tai, estudados por Panger e por seus colegas Julio Mercader e Christophe Boesch, apenas escolhem as pedras mais adequadas para quebrar as nozes da árvore Panda oleosa, as mais difíceis de quebrar da África ao sul do Saara.
Os bichos escolhem pedras que têm entre 3 kg e 15 kg para a tarefa, às vezes transportando-as por quase um quilômetro. Enquanto elas servem como "martelo", os chimpanzés escolhem também uma "bigorna" -em geral, uma raiz de árvore- que serve de apoio para a noz a ser esmigalhada, com todo o cuidado para não quebrar a cobiçada castanha.
Esse processo todo leva sete anos para ser aprendido, conta Panger. "Parece muito simples, mas eles precisam aprender exatamente que força e velocidade usar. Se a pedra for pesada demais ou se eles exagerarem na força, acabam perdendo a comida", diz a primatologista.
"É claramente um comportamento cultural. Apenas os chimpanzés da África Ocidental quebram nozes para conseguir alimento", afirma a pesquisadora. Não que o repertório deles seja limitado: eles costumam usar uma variedade de artefatos à base de vegetais, como "copos" de folhas para recolher água da chuva ou capim para caçar formigas.
O achado também revelou que as lascas dos "martelos" se parecem muito com os primeiros instrumentos cortantes de hominídeos. A humanidade, sugerem os pesquisadores, pode muito bem ter inventado a faca numa simples sessão de quebra-nozes.



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