São Paulo, domingo, 24 de maio de 2009

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+ MARCELO LEITE

Células-tronco à vista


O plano é que elas se instalem na retina, onde se forma a imagem


Fazia algum tempo que as células-tronco não frequentavam o noticiário. Na semana que passou, essas células-curinga voltaram à cena por obra de um grupo do Hemocentro de Ribeirão Preto e do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP de lá. A ideia, desta vez, é fazer cegos voltarem a ver...
Em pauta estão células-tronco adultas, não embrionárias. Quer dizer, não dependem da destruição de embriões humanos para ser obtidas. Só da punção do osso da bacia do paciente, para retirada de uma amostra de medula óssea.
Cerca de 1 milhão de células ditas mononucleares, componentes do sistema de defesa do corpo, são separadas da medula por centrifugação. Só 1% são células-tronco propriamente ditas, precursoras que guardam potencial para se transformar em vários outros tipos celulares.
O grupo injetou esse coquetel de células, há poucos dias, nos olhos de três portadores de retinose pigmentar, doença de origem hereditária que leva à cegueira. Elas foram obtidas dos próprios pacientes, para não haver rejeição. A injeção foi no vítreo, o recheio do globo ocular. O plano é que as células-curinga se instalem na retina, a tela no fundo do olho onde se formam as imagens, e ajudem a recuperar vasos sanguíneos e outras estruturas.
A esperança, menos que uma hipótese, é que isso reverta parte da degeneração que resulta em cegueira. Outros dois pacientes entrarão no teste nesta semana. Como se trata de terapia experimental, os pesquisadores só têm autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa para testá-la em cinco pacientes.
O propósito é mais de verificar a segurança do procedimento do que curar alguém. Mesmo assim, os pacientes já relatam com animação algum aumento da luminosidade. A primeira a receber o implante de células conseguiu identificar uma letra impressa. Os resultados obtidos com animais são "contundentes", segundo o oftalmologista Rodrigo Jorge, integrante do grupo. Esses estudos, em geral com camundongos, foram feitos fora do Brasil. O laboratório mais destacado é o de Atsushi Otani, do Instituto Scripps, da Califórnia (EUA).
Para o leigo, o mesmo adjetivo talvez não ocorra depois de ler os efeitos obtidos com os roedores. Empregam-se camundongos programados para desenvolver a degeneração da retina, que de fato chega a ser interrompida. Mas só se as injeções ocorrerem até o 16º dia de vida (30 bastam, no laboratório, para a cegueira terminar de se instalar no bicho).
A melhora pode ser medida por meio de eletrorretinografia, um teste que registra a atividade elétrica das células da retina sensíveis à luz. Funciona. Mas os autores do estudo alertam que o padrão de atividade é inteiramente anormal.
O exame das retinas, depois de sacrificados os animais, também mostra anormalidades na proporção entre suas células sensíveis (bastonetes e cones). Camundongos que deveriam ficar cegos estão enxergando alguma coisa, mas não se sabe bem o quê.
Os pacientes humanos estão em fase adiantada da degeneração. Resta-lhes menos de 10% da visão. Só dentro de três meses haverá dados para redigir um artigo científico dizendo se a terapia experimental teve algum resultado, mesmo que diminuto. Jorge diz que o grupo só fez o anúncio porque um dos pacientes começou a falar do tratamento em sua cidade, Birigui, o que gerou "especulações".
Foi a sua maneira de prevenir a proliferação de boatos e meias verdades, afirma o pesquisador.


MARCELO LEITE é autor de "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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