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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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Ciência em Dia

Proibição da clonagem pela ONU

Marcelo Leite
editor de Ciência

O jornalista britânico David Dickson, diretor do site Rede de Ciência e Desenvolvimento (www.scidev.net), defendeu recentemente num editorial (www.scidev.net/Editorials/index.cfm) que a ONU não deveria banir a clonagem humana, se deliberar sobre o assunto nas próximas semanas, como previsto. Seus argumentos são ponderados e ponderáveis, o que exige boa dose de reflexão.
A posição mais fácil, sem dúvida, é ficar contra a clonagem e a favor da proibição. Mostra-se quase visceral a repugnância que a fabricação de cópias de seres humanos suscita, e a experiência ensina que cabe prestar atenção ao que dizem nossas entranhas.
Para quem tem estômago forte, há os argumentos éticos formais. O filósofo Jürgen Habermas, por exemplo, acha que nascer com a carga genética escolhida por outrem rebaixa a pessoa diante de todas as outras que tenham herdado aleatoriamente seus quinhões de DNA.
Dickson escolhe o caminho menos batido. Na sua opinião, o problema está na chance razoável de que a proibição global abarque os dois tipos de clonagem, a reprodutiva e a terapêutica. Ocorre que os lobbies antiaborto conseguiram influenciar países poderosos, como os EUA, a defender na ONU a posição de que a proibição só poderia ser adotada se banisse ambas as formas.
Clonagem reprodutiva é a que todos conhecem, usada para produzir a ovelha Dolly em 1996 e, de lá para cá, uma dezena de outros mamíferos. Toma-se uma célula de animal adulto e um óvulo desprovido de núcleo, forçando sua fusão por meios técnicos (como uma descarga elétrica). A célula resultante pode passar a se comportar como um ovo e originar um embrião, que, se implantado num útero, com sorte dará origem a um organismo com patrimônio genético idêntico ao do adulto que doou a célula inicial.
A clonagem terapêutica é semelhante, a não ser pelo fato fundamental de que o resultado da fusão não chega a ser implantado no ventre de uma fêmea. Antes disso ele é destruído para a retirada das chamadas células-tronco embrionárias, com as quais a biomedicina promete desenvolver terapias revolucionárias para algumas doenças degenerativas, como o mal de Parkinson.
Uma proibição genérica impediria a continuação desses estudos, o que muitos cientistas consideram limitação indevida e imprudente da liberdade de pesquisa. Como Dickson, acham que a proibição, se adotada, deveria recair apenas sobre a clonagem reprodutiva.
Ora, quem condena toda e qualquer forma de clonagem o faz em geral por razões morais, muitas vezes de ordem religiosa. De uma perspectiva verdadeiramente universalista, tais razões não são piores nem melhores do que as imagináveis para proibir só a clonagem reprodutiva, também elas de fundo moral.
Dito isso, a posição mais consistente seria defender a ausência de proibição -mesmo porque, sustentam os mais pragmáticos (ou mais cínicos), a clonagem terminará sendo feita, de um jeito ou de outro. Como a história não se cansa de mostrar, tais injunções não costumam ter grande efeito desencorajador sobre a "hybris" que impera nos laboratórios, "essas cozinhas repugnantes em que conceitos são refogados com ninharias", nas palavras de Bruno Latour.
Além disso, ninguém garante que a clonagem reprodutiva não possa um dia entrar em ressonância com aspirações humanas, em lugar de causar calafrios.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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