São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

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A floresta dos homens

Alberto César Araújo - 26.mai.2000/"A Crítica"
O arqueólogo Eduardo Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, escava urna funerária em sítio de Manaus


Livro de arqueólogo paulista faz o primeiro panorama completo da ocupação humana da Amazônia na pré-história

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Poucos arqueólogos experimentaram as agruras do trabalho de campo na selva amazônica de forma tão concentrada quanto o paulista Eduardo Góes Neves. Em 2001, uma picada de jararaca interrompeu uma de suas temporadas de escavação -e por pouco não lhe interrompe a vida- num sítio em Iranduba, perto de Manaus. Quatro anos depois, no ano passado, uma tragédia ainda maior aconteceu, na mesma cidade: o principal colaborador de Neves, o americano James Petersen, foi assassinado durante um assalto, num dia de folga.
Também concentrada é a dose de informação em "Arqueologia da Amazônia", primeiro livro do pesquisador voltado para o público geral. Em apenas 88 páginas, o pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP traça o histórico de mais de 10 mil anos de ocupação humana da maior floresta tropical do mundo, que alguns incautos ainda insistem em chamar de "deserto verde".
Mas a quem interessa saber sobre a pré-história amazônica? A resposta do autor passa longe de utopias fitzcarraldianas e das lendas de Eldorado. O passado indígena amazônico interessa ao presente nacional amazônico. "Parte dos problemas sensíveis no que se refere à condução e à discussão (...) de estratégias voltadas para a ocupação e o desenvolvimento sustentável da Amazônia está diretamente ligada ao completo desconhecimento, ou até mesmo desinteresse, com relação à milenar história de ocupação humana da região", afirma Neves. Trocando em miúdos, a presença humana ajudou a moldar a floresta como ela é hoje -e o corolário disso é que discutir a preservação da selva tropical como se o bioma fosse algo isolado da presença humana é ignorar a própria história natural daquele lugar.
Uma provocação e tanto.
A medida do desconhecimento ao qual Neves se refere é o fato de que seu livro provavelmente seja o primeiro para não-arqueólogos a dar um panorama completo da pré-história amazônica -sendo que as pesquisas arqueológicas sistemáticas têm mais de cinco décadas na região.
Esse pioneirismo tardio tem vários motivos: o mais imediato é que, até agora, existe muito, muito pouca evidência material sobre os antigos habitantes da floresta. A umidade, a acidez dos solos e a vegetação permitiram preservação de restos humanos e vestígios de suas aldeias em poucos lugares. Esta é a barreira física, digamos, à investigação científica.
Mas até bem pouco tempo atrás havia uma barreira mais difícil de transpor: a ideológica. Ela impedia que arqueólogos jovens e empolgados como Neves e outros de sua geração -Denise Schaan, Vera Guapindaia e Edithe Pereira, do Museu Goeldi, Denise Gomes, também do MAE-USP, e Mike Heckenberger, da Universidade da Flórida- se lançassem ao trabalho de campo na floresta.
Dentro do modelo hegemônico de classificação das sociedades indígenas americanas, definido nos anos 1940 por arqueólogos dos EUA, a Amazônia era considerada um território marginal, ecológica e culturalmente, indigno da atenção da arqueologia "séria" a não ser talvez nas referências à elaborada cerâmica marajoara -interpretada como resultado de uma migração fracassada de povos andinos para as terras baixas sul-americanas.
O mito do ambiente marginal começou a ser derrubado na década de 1980, quando escavações da americana Anna Roosevelt no Pará mostraram que a cerâmica americana -inovação que marca alguma complexidade social e algum adensamento demográfico- é uma genuína invenção dos povos da floresta tropical.
De lá para cá, a busca por uma cronologia amazônica completa tem se intensificado, com descobertas importantes feitas no fim da década passada e no começo desta. Pesquisas ainda em curso do próprio Eduardo Neves têm revelado assentamentos gigantescos às margens do rio Amazonas: aldeias fortificadas e ocupadas por milhares de pessoas, durante intervalos surpreendentemente curtos de tempo. Novos estudos também têm lançado luzes sobre as civilizações mais emblemáticas da Amazônia antiga, a marajoara e a tapajônica (autora das famosas cerâmicas de Santarém).
Que ninguém busque em "Arqueologia da Amazônia" uma palavra final sobre as antigas sociedades indígenas amazônicas. Esta é, em mais de um sentido, uma fronteira do conhecimento. Mas Neves tem o mérito adicional de transmitir ao leitor (sem cobras aqui) seu próprio fascínio pela floresta onde escava há 20 anos. Se, como sustenta o autor, não é possível entender a floresta sem entender o homem, um buraco na bibliografia amazônica começa a ser fechado.

LIVRO - "Arqueologia da Amazônia" Eduardo Góes Neves; Jorge Zahar Editor, 88 págs., R$ 22


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